28 de outubro de 2010

Comentário do conto de José Cardoso Pires.

José Cardoso Pires figura entre os mais talentosos ficcionistas da literatura portuguesa. Seus romances e contos trazem a marca da sua experiência pessoal, condensam em cada página as suas inquietações, a imagem que se faz do homem e da vida. Trata-se de uma obra que não se inscreve, definitivamente, em nenhum grupo ou gênero literário português. A partir da publicação do seu  livro de estréia “Os Caminheiros e Outros Contos” (1949), até o último, “Lisboa, Livro de Bordo ” (1997), o escritor experimentou várias tendências literárias, inclusive o neo-realismo, o qual procurou seguir por um tempo mais prolongado. José Cardoso Pires morreu em Lisboa, em 26 de outubro de 1998. Em vida, foi galardoado com vários prêmios, dentre os quais o Prêmio Pessoa de 1997. O conto “Uma simples flor nos teus cabelos” é considerado um dentre os melhores do autor.
Neste conto,  o leitor é confrontado com a presença de duas seqüências narrativas que se alternam, conferindo um toque de originalidade à trama. Uma das narrativas faz parte de um livro que a personagem masculina lê. É protagonizada pelo casal Paulo e Maria, e se alterna com a história principal, vivida pelo casal Quim e Lisa. Portanto, são abertos dois espaços na narrativa: um, transcrito em itálico e narrado com certo toque de romantismo e poeticidade, é caracterizado pela amplitude do espaço de uma bela praia, iluminada pela luz do fim da tarde. Este espaço idílico abriga um casal enamorado, Paulo e Maria – que abre um campo dinâmico de beleza, de alegria, de leveza, de vibrante entusiasmo pela vida, dentro do conto. 
O outro, escrito em letras redondas em linguagem seca e contida, é um  espaço fechado, noturno, estático, restrito ao quarto de um casal – Quim e Lisa - que, nele, sustenta um estéril diálogo.
Quim e Lisa, marido e mulher, estão deitados em sua cama, preparados para dormir: ela, com insônia, carente e agastada, insiste em desviar o marido da leitura, tagarelando sobre assuntos corriqueiros, fazendo perguntas desnecessárias ou queixas com o intuito de fazê-lo voltar-se para ela. Ele, engolfado na leitura de um livro e desinteressado em relação à conversa superficial de Lisa, trata de responder laconicamente aos seus reiterados apelos, mostrando-se mais interessado em fruir, na leitura do livro, as sedutoras peripécias de um casal romanticamente enleado numa relação amorosa perfeita. Tal atitude de indiferença denota a impossibilidade de comunicação, de diálogo e de sintonia entre Quim e Lisa. 
Temos, portanto, uma história fictícia lida pela personagem masculina – Quim-, que se alterna com a história real que este vive com a mulher Lisa, através de sucessivos cortes nos dois fios narrativos em alternância. A partir daí, é inevitável a comparação entre os dois casais, ensejada pela técnica de encaixe de uma segunda história dentro da história principal.
A atitude alheada dele deve-se à história que está lendo, na medida em que esta lhe proporciona uma fuga, uma espécie de “parênteses” na realidade, capaz de isolá-lo da mesmice do mundo opaco em que vive. Na ficção, ele encontra o desafogo, a leveza, a chance de escapar por momentos da realidade tediosa que o rodeia, mergulhando noutra história palpitante de vida, de emoções e de sonhos que a leitura lhe oferece.A história que tanto despertou o interesse de Quim é muito simples: as personagens principais, Paulo e Maria, estão hospedados numa estalagem de praia, num final de inverno, ao entardecer, vivendo momentos deleitosos de cumplicidade, afeto, alegria, paz e entendimento. Os dois brincam, riem, correm pelo areal, saltam poças d´água, deliciam-se com cada minuto que fruem juntos, jantam à luz de uma vela e trocam gestos de afeto, descontraídos e felizes. Vivem, portanto, um tipo de relação cúmplice e permeada de alegrias, afeto e entendimento que, comparada com a mesmice da desgastada relação de Quim com a mulher, muito contribui para pôr em evidência a tediosa rotina do seu casamento, no qual faltam atrativos, sintonia e entendimento, enquanto sobejam o cansaço, a irritação e o aborrecimento, caracterizando o desencontro dos seus dissonantes mundos, agravado pela corrosiva rotina do dia-a-dia do casal.
Os casais das duas histórias vivem vidas opostas. A vida de Quim e Lisa configura-se como uma representação da vida real, enquanto a do outro casal tipifica a vida idealizada, traçada dentro das ilimitadas possibilidades da ficção, bem próxima dos sonhos. Os contrastes entre as duas formas de vida são fundamentais: A história do casal Quim e Lisa, transcorrida no mundo real, é racional, metódica, rotineira, tediosa, espartilhada em pressupostos sociais previsíveis e preestabelecidos. A história de Paulo e Maria é uma projeção dos desejos de muitas pessoas sonhadoras, de índole romântica, avessas à rotina e à mesmice do quotidiano, pessoas que ousam fruir a liberdade e as coisas simples da existência.   
Vale salientar que em todo o desenrolar da trama, fica bem evidenciada a solidão, a amargura, a carência e o conseqüente agastamento de Lisa, decorrente das próprias circunstâncias que cercam sua vida em um casamento em falência, no qual já não há troca de afeto. Todavia, ela não vislumbra fazer mudanças, tornou-se uma escrava das suas atividades rotineiras, vive presa ao seu estreito mundinho convencional. Em sua vida não há espaço aberto ao sonho, à aventura, à outra forma de vida.  Daí não admitir como normal a possibilidade de vivenciar outra realidade, como disse ao marido, após ouvir o relato da história de Paulo e Maria: "Mas isso é só nos filmes dos milionários". "Não me queres convencer que acreditas numa coisa dessas". 
O marido diz que acredita, ouvindo de Lisa o que não gostaria que ela dissesse: "Deu em maluquinho, não deu?" Como resposta, irritado  ele manda que ela “fique quieta”. Este casal, decerto, está muito próximo da separação. Vivem em mundos opostos. Todavia, o que mais interessa nesse conto não são as duas histórias em si mesmas, mas sim a condição existencial das personagens de cada história, as circunstâncias em que vivem e convivem, a denúncia do ser humano esvaziado, desgastado por seu cotidiano corrosivo e alienante.