1 de novembro de 2010

A arte de ser feliz, crônica de Cecília Meireles.


Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega; era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas d’água que caiam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
(Cecília Meireles, Quadrante I, Ed. do Autor, 5a ed. Rio de Janeiro, 1968, p. 10)


Comentário do texto:


“É preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.” Nesta frase está resumida a lição mágica que escancara as portas da sensibilidade para que vejamos, com olhos de ver, as coisas e as pessoas em sua essência, em profundidade. A mesma paisagem pode ser vista de formas completamente diferentes e até opostas por pessoas diferentes, como as pessoas às quais a cronista fala dessas pequenas felicidades que fruía de sua janela. Algumas pessoas “cegas” para a “eterna novidade do mundo” acharam que Cecília vira algo saído do seu imaginário, “que essas coisas não existem”, outras igualmente “cegas” e insensíveis disseram que tais percepções só existem diante da janela da cronista. Apenas alguns mais lúcidos e sensíveis atinaram com a verdade: “é preciso aprender a ver, é saber enxergar nas coisas mais singelas do cotidiano, mesmo no já visto, “aquilo que nunca antes tinha visto”, sentindo-se “nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo...”, como pregava Alberto Caeiro.
Ver com olhos lúcidos e perscrutadores, interessados em ir além das aparências, não é a mesma coisa que olhar aleatoriamente, sem fixarmos a nossa atenção e a nossa capacidade de percepção. Aprender a olhar, educar a visão é, portanto, essencial para que possamos captar a realidade que nos circunda em plenitude, encantarmos-nos com ela, fruindo momentos fugazes de íntima alegria, de felicidade e de comunhão com as coisas e com as pessoas. Era com esse olhar educado para ver, que Cecília desvendava toda a beleza dos elementos mais simples do cotidiano, que percebia a poeticidade e leveza do pombo pousado no ovo de louça azul que se confundia com o azul do céu, e absorvia a essência poética que pode existir nos gestos, nos fatos e nas cenas mais corriqueiras do dia-a-dia.
Alberto Caeiro, o heterônimo pessoano, diz que: “o essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / Saber ver quando se vê”.
Cecília, em sua crônica, revelou, mais uma vez, a sua poderosa percepção do real, sua sensibilidade extraordinária e sua visão poética e humaníssima da vida. Ao fim e ao cabo, findou nos legando uma lição sobre a “arte de ser feliz”, tão fácil de ser posta em prática, tão acessível a todas as pessoas empenhadas em ver o mundo através da lupa da beleza e da sensibilidade.