1 de dezembro de 2010

Comentário do conto "Reminisção", de G. Rosa


Reminisção é um dos contos da coletânea Tutaméia – terceiras estórias (1967. Talvez seja o que mais possibilita a identificação de algumas das diretrizes que norteiam o fazer literário de Guimarães Rosa, implícitas nos seus quatro prefácios, todos eles constituídos como reflexões veiculadoras da teoria literária pessoal e particularíssima do autor, perceptíveis numa leitura atenta das linhas e entrelinhas de cada um deles. 
Em uma primeira leitura, “Reminisção” parece ser apenas a narrativa de uma estranha e inusitada história de amor, vivenciada por Romão e Drá, em uma cidadezinha sertaneja. Mas, há outras leituras possíveis do conto que remetem para questões de ordem teóricas, pois, nele, Guimarães Rosa instaura uma realidade que rompe com os sistemas racionais do pensamento para a apreensão do real, substituídos por outro pautado em sua visão particularizada e pessoal sobre os fatos ficcionalizados. Trata-se de um posicionamento do autor contrário à supremacia da Razão, esquivo ao primado do método racional como único e superior caminho para a apreensão do real. Guimarães Rosa privilegia outras escolhas, como a intuição, a revelação, a inspiração, para fugir ao dogmatismo da inteligência reflexiva e à tirania da razão cartesiana. 
No que respeita à “estória” narrada, temos duas personagens centralizando a trama: Romão, sapateiro, homem tranqüilo, tolerante, devotado, e sua mulher, a Drá, mulher horrenda, má, “feia feito fritura queimada” (p.82) ou “feia como os trovões da montanha”, “empeçonhada”, “trombuda” (p.83) como declara o narrador, que não faz economia dos mais negativos adjetivos e comparações para caracterizar a personagem feminina como a mais peçonhenta, odiosa e execrável dentre todas as mulheres do lugarejo. Romão, que parece cego para as más qualidades e intensa feiúra da criatura, apaixonou-se perdidamente por ela. O seu intenso amor é uma força avassaladora que ignora e supera tudo, feiúra, doença, traição, ignorando, inclusive, as opiniões desfavoráveis da comunidade. Sim, a visão de Romão sobre Drá é bem diversa das visões da comunidade sobre a mesma. Romão consegue transcender à visão da aparência física da mulher, sua feiúra e mau gênio, vislumbrando outra realidade que subverte a verdade visível e observável, substituindo-a por uma realidade oposta. 
Os olhos do homem parecem não enxergar a ostensiva feiúra e a exacerbada maldade da mulher, dando a impressão de que só são capazes de ver alguma coisa escondida atrás das aparências, alguma coisa misteriosa que a comunidade não consegue ver e que unicamente Romão, pode perceber: 

“ Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos; afugentou os de sua amizade. Romão amava. Decerto ela também [...]. Todo o tempo o atazanava. Demais de cenhosa. Caveirosa, dele, aquela mulher mandibular. Vês tu, ou vê você? Romão punha-lhe devoção, com pelejos de poeta, ou coisa ou outra, um gostar sentido e aprendido, preciso, sincero como o alecrim. [...] Disso ninguém dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta cegueira? Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memória pré-antiqüíssima. Tudo vem a outro tempo (p. 82)”. (grifos nossos) 

A frase grifada e o próprio título do conto justificam uma leitura do conto à luz da teoria do “amor platônico”, e da noção de “reminiscência” de Platão, filósofo cuja obra era uma grande preferência de leitura do autor. 
É evidente que Romão, não está de acordo com a forma como a comunidade vê sua mulher. Segundo a sua particular visão, Drá é belíssima. Romão não tem dela uma visão física, oriunda dos seus olhos, mas sim uma visão de outra ordem, quiçá vinda das camadas profundas do seu inconsciente, dotadas de poderes de visualizar, sob o véu das aparências, para além do físico de Drá, uma beleza sublime, transcendente, acessível apenas aos seus olhos. 
No final do conto, quando Romão adoece, já prostrado no leito de morte, Drá aparece a seus olhos em sua forma verdadeira, em sua essência: 

"Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de
instante: o esboçoso, vislumbrança ou transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria." (p. 84) 

Como o narrador afirma, Romão guardava em si “memória préantiquíssima” (p. 84) – ou seja, supõe-se que a essência de Drá, sua natureza Nhemaria, em conformidade com a teoria do amor platônico, está decalcada, indelevelmente, na alma de Romão, desde tempos e realidades anteriores, vivenciadas por ambos. Assim, de acordo com a teoria platônica da reminiscência, Romão ama porque se lembra com os olhos da alma, e ama com tanta intensidade porque rememora, porque guarda em sua alma a lembrança da face original de Drá. A teoria platônica da reminiscência afirma que, quando a alma desencarna, retoma o conhecimento direto das Idéias, esquecido ao reencarnar. Todavia, tal conhecimento permanece, de forma latente, interiorizada na alma reencarnada. Isto significa que o conhecimento consiste em trazer à consciência, por meio de algum estímulo, as reminiscências interiorizadas. 
Observe-se, no final da narrativa, o momento mágico da epifania, no qual as pessoas presentes no quarto também visualizam momentaneamente a transformação da terrificante Drá na belíssima e etérea Nhemaria. Visualizam “com olhos emprestados” (p. 83), ou seja: por meio da palavra escrita do autor, modificando, metamorfoseando e recriando a realidade em conformidade com a sua concepção da vida, do homem e do mundo. Neste caso, as pessoas da comunidade que conseguem visualizar a transfiguração de Drá em Nhemaria, metaforizam os leitores que conseguem captar o sentido sotoposto do texto, apreendendo o que ultrapassa à compreensão racional do senso comum, o que transcende o sentido manifesto do texto. 


Um comentário:

Lila Chaves disse...

Muito significativa sua leitura em torno do conto...parabéns!