1 de dezembro de 2010

Reminisção, conto de Guimarães Rosa

Vai-se falar da vida de um homem; de cuja morte, portanto. Romão – esposo de Nhemaria, mais propriamente a Drá, dita também a Pintaxa – impar o par, uma e outro de extraordem. Escolheram-se, no Cunhãberá, destinado lugar, onde o mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem. Sua história recordada foi longa: de tigela e meia a peso de horror. O fundo, todavia, de consolo. Esse é um amor que tem assunto. Mas o assunto enriquecido – como do amarelo extraem-se idéias sem matéria. São casos de caipira.
Foi desde. Parece até que iam odiar-se, moço e moça, no então. Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé- - ximbeva; primeiro sinisga de magra, depois gorda de odre, sempre própria a figura do feio fora-da-lei. Medonha e má; não enganava pela cara. Olhar muito para uma ponta de faca, faz mal. Dizia-se: - “Indicada.”

Romão, hem, gostou dela, audaz descobridor. Pois – por querer também os avessos, conforme quem aceita e não confere? Inexplica-o a natureza, em seus efeitos e variados objetos; ou como o principal de qualquer pergunta nela quase nunca se contém. Romão, meão, condiçoado, normalote, pudesse achar negócio melhor. Mas ele tinha em si uma certa matemática.E há os súditos, encobertos acontecimentos, dentro da gente.

De namoro e noivado, soube-se pouco. Também da sem-graça cerimônia ou maneira, de que se casaram, padrinhos Iô Evo e Iá Ó e quiçá os de Romão e Drá anjos entes. Àquilo o povo assistiu com condolência? Tais vezes, a gente ao alheio se acomoda – preto no branco, café na xícara. Cunhãberá via-os não via, sem pensar em poder entender: anotava-os.
Mas o casal morou na Rua-dos-Altos, onde o Romão estava bom sapateiro. Para fora, deviam de ser moderados habitantes. Era um silêncio quase calado. Comparem-se: o vagalume, sua luzinha química; fatos misteriosos – a garça e o ninho por ela feito. Iam, consortes, para os anos que tendo de passar.
Se como o nem faro e cão – mas num estado de não e sim, rodavam tantas voltas – juntos. Pois. A Drá contra a ocasião de querer-bem se tapava, cobreando pelos cabelos, nas mãos um pedaço de pedra. Ela não perdoava a Deus. – “Padece o que é...” – deduzia Iá Ó. Da dor de feiúra, de partir espelho. Iô Evo disse: que tomava culpa, de ter testemunhado.
Romão, hem, se botava de nada? Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos; afugentou os da sua amizade. Romão amava. Decerto ela também, se sabe hoje, segundo a luz de todos e as sombras individuais. O estudo do mundo.
Todo o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa, dele, aquela mulher mandibular. Vês tu, ou vê você? Romão punha-lhe devoção, com pelejos de poeta, ou coisa ou outra, um gozar sentido e aprendido, preciso, sincero como o alecrim.
Tinhava-se, a Drá. Seus filhos não quiseram nascer. Romão imutava-se coitado. Disso ninguém dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta cegurira? Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memória pré-antiquíssima. Tudo vem a outro tempo. 
Então, quando deles no diário ninguém mais se espantava, de vez, houve. Sortiu-se a Drá, o diabo às artes. Égua aluada, e com formigas no umbigo.Em malefaturas, se perdeu, por outro, homem vindico, mais moço.O povo, vendo, condenava-a; de pena do Romão – a tragar borras. Ele, não, a quem o caso de mais perto tocava. E a Iô Evo disse: que bom era ela crer, que valia, que dela gostavam... Romão olhava em ponto, pisava curto, tinham receio de sua responsabilidade.
Nem o moço de fora a quis mais. Desrazoável, mesmo assim, a Drá de casa se sumiu, com seus dentes de morder. Romão esperou, sem prazo. Se esforçava, nesse eixar-se, trincafiava, batia sola. Seguro que, por meio de Iá Ò, pedu que ela tornasse.
Drá voltou, empeçonhada, trombuda, feia como os trovões da montanha. Romão respeitava-a, sem ralar-se nem mazelar-se, trocando pesares por prazeres, fazendo-lhe muita fidelidade. Fez-lhe muita festa. De por aí, embora, seresma ela se aquietou, em desleixo e relaxo. Nem fazia nada, de cabeça que dói. Só empestava. Vivia e gemia - paralelamente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo.
Foi, e teve ela uma grande doença. Real.de que escapou pelo Romão, com seus carinhos e tratos. Sarou e engordou, desestragadamente, saco de carnes e banhas, caindo-lhe os cabelos da cabeça, nos beiços criado grosso buço, de quase barba. Era bem a Pintaxa, a esta só consideração. Cunhãberá jurou-a por castigada. Romão queria vê-la chupar laranjas, trivial, e se enfeitar sem ira nem desgosto. Ele envelhecia também. Os dois, à tarde, passeavam. Quem espera, está vivendo.
Depois, ele se enfermou, à-toa, de mal de não matar. A Drá alvoroçou o lugar. Ela chorava, adolorada: teve de emsi, notícia, das que não se dão. Pediu socorro.
O povo e o padre no quarto, o Romão onde se prostrava, decente, chocho, em afogo, na cama. Ele estava tão cansado;buscava a Drá com os olhos. Que quis falar, quis, pôde é que foi não. Iá Ó passava um lenço, limpava~lhe a cara, a boca. Iô Evo mandou-o ter coragem, somente.
Dando-se, no Cunhãberá, o fato, de inaudimento.
Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de instante: o esboçoso, vislumbrança ou transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a luminosidade, alva belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria.
Romão dormido caiu, digo, hem, inteiro como um triângulo, rompido das amarras. Ele era a morte rodeada de ilhas por todos os lados. Mentiu que morreu. Deu tudo por tudo.
A Drá esperançada se abraçou com o quente cadáver, se afinava, chorando pela vida inteira. Todo fim é exato. Só ficaram as flores.



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