29 de novembro de 2011

Sophia de Mello B. Andresen : A Viagem.

 A estrada ia entre campos e ao longe, às vezes, viam-se serras. Era o princípio de Setembro e a manhã estendia-se através da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas. E, dentro do carro que os levava, a mulher disse a homem:
- É o meio da vida.
Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse. Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram.
- Devemos estar a chegar - disse o homem. E continuaram.
Árvores, campos, casas, pontes, serras, rios, fugiam para trás, escorregavam para longe. A mulher olhou inquieta em sua volta e disse:
- Devemos estar enganados. Devemos ter vindo por um caminho errado.
- Deve ter sido na encruzilhada - disse o homem, parando o carro. - Virámos para o Poente, devíamos ter virado para o Nascente. Agora temos de voltar até à encruzilhada. A mulher inclinou a cabeça para trás e viu quanto o Sol já subira no céu e como as coisas estavam a perder devagar a sua sombra. Viu também que o orvalho já secara nas ervas da beira da estrada.
- Vamos:- disse ela.
O homem virou o volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para trás. A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso.

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Comentário do conto "A Viagem".


 “A Viagem” é, incontestavelmente, um das narrativas mais sugestivas e sedutoras do livro Contos Exemplares, de Sophia de Melo Breyner Andresen. Configurando-se como uma alegoria da vida, em que a trajetória existencial do homem equivaleria a uma viagem sem regresso, ao longo da qual as coisas vão ficando para trás, tudo desaparece e tudo se vai perdendo, sem que possamos impedir ou recuperar, pois não se pode vivenciar duas vezes as mesmas sensações, emoções e deleites, da mesma forma que nos é vedado passar duas vezes, da mesma forma, pelos lugares do vivido.
Sob a influência da passagem do tempo, tudo se move, se transforma, os seres humanos passam por um processo de mutação irreversível e cruel que termina com a morte.
Ao longo do próprio texto, podem-se assinalar vários indicativos de grande importância para a compreensão e captação do que a autora deseja comunicar (exemplificar). Senão vejamos: os protagonistas são personagens signos, que não possuem um nome próprio a distingui-los, ou seja, são simplesmente um homem qualquer e uma mulher qualquer, representando todo o ser humano.



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4 de novembro de 2011

Machado de Assis: O Enfermeiro.


PARECE-LHE ENTÃO que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado;
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.
Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao coronel
Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.
Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos!

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Comentário do conto O Enfermeiro, de Machado de Assis.

Pertence à "segunda fase" – a fase realista - do escritor, esse conto figura, sem sombra de dúvidas, entre os melhores do autor e faz parte da coletânea Várias Histórias, publicada em 1896
O Enfermeiro é um típico conto machadiano, pejado de humanidade e de ironia do narrador homodiegético (narrador e personagem) nomeado –Procópio - que se mantém distanciado dos acontecimentos narrados, observando com a impiedosa lupa da crítica as imperfeições e mazelas das personagens. Estas são, como sempre, tipos representativos de determinado grupo social ou profissional, cuja condição moral é analisada com crua objetividade.
O narrador-personagem - Procópio - relata a sua própria história ocorrida na época em que, ainda jovem, tinha ido trabalhar como enfermeiro para um riquíssimo e rabugentíssimo senhor de nome Felisberto, que de tão exacerbadamente insuportável tornara impossível a vida dos enfermeiros anteriores, levando todos a pedirem demissão do espinhoso trabalho. Por causa desses sucessivos insucessos, o narrador é considerado pelo padre da pequena cidade do interior em que estão uma espécie de salvador, tratado a pão de ló, já que representava a última esperança.
De início o enfermeiro trata o moribundo com a maior paciência, o melhor dentre os que o antecederam, o que resulta na conquista da simpatia do velho. Todavia, a harmonia entre os dois teve curta duração: o doente enfadou-se de tanta paz e calmaria, começando a dar rédeas soltas ao seu medonho e maquiavélico gênio. Passou, então, a tratar rispidamente o enfermeiro.
Este suportou a sistemática grosseria do doente até que sua paciência atingiu seu limite, levando-o a pedir demissão. Para espanto do enfermeiro, o paciente abrandou, pediu-lhe desculpa e que tivesse tolerância para o seu mau gênio. Todavia, a paz durou pouco tempo, logo a torturante irritabilidade e grosseria retomaram, chegando ao auge no momento em que o velho jogou uma vasilha d’água na cabeça do enfermeiro. Este, enlouquecido pela dor, perdeu o controle e agrediu o doente, matando-o por esganamento.
Este é o ponto alto da narrativa, pois introduz a parte mais interessante da mesma, ou seja: assinala o momento no qual o narrador tomou consciência do ato extremo praticado e entra em uma crise de remorso torturante. Daí, sua preocupação passa a ser a construção de justificativas em sua mente que pudesse amenizar o excruciante peso que massacrava a sua consciência e, ao mesmo tempo, que conseguisse fazê-lo enganar a si mesmo, livrando-o do sentimento de culpa.
Acontece que o velho tinha um aneurisma em estágio avançadíssimo que iria lhe causar o óbito a qualquer momento. Todavia tal desculpa seria a salvação de sua consciência se um fato surpreendente, com intenso sabor de ironia, não tivesse ocorrido e provocado um sério transtorno em sua já delicada situação: o velho, em seu testamento, fizera do enfermeiro o único herdeiro. Tal revelação cai como uma bomba na mente culpada do protagonista, resultando em um grave conflito interior. Para livrar-se dos demônios do remorso ele cogita em doar a fortuna, depois passa a elogiar o velho insuportável em público, a contar histórias engraçadas sobre ele.
Com tal convicção e empenho começou a acreditar em sua inocência, que findou ilusoriamente a acreditando nela extirpando, assim, de sua consciência qualquer resquício de remorso. Nem lhe passou mais pela cabeça doar a herança. Quando muito, fez algumas doações, como forma de “arejar” a consciência.
No conto em questão, o homem é mais uma vez retratado por Machado como um ser corrompido, egoísta, ingrato, oportunista e preso a pulsões malignas. Tais características estão bem presentes tanto em Procópio quanto no Coronel Felisberto.
Note-se bem que ocorre uma mudança radical nos perfis psicológicos das duas personagens. O enfermeiro passa de vítima da estupidez do Coronel a seu assassinato. O Coronel, de velho endiabrado, agressivo e ingrato passa a ser visto como um homem generoso e dotado de um raro sentimento de gratidão, ao deixar para o seu enfermeiro toda a sua fortuna. Assim, ocorre uma evidente subversão de qualquer ação maniqueísta que destrói a crença de que existem dois tipos definidos de pessoas: as boas e as ruins, mostrando que ninguém é tão bom ou tão mau quanto possa aparentar, sendo possível a coexistência da bondade e da maldade numa mesma pessoa.
Machado de Assis mostrou, com a habilidade que lhe é peculiar, o perene conflito interior do ser humano, sempre dividido entre dois titãs em luta em seu interior: o bem e o mal.

Zenóbia Collares Moreira


1 de outubro de 2011

Guimarães Rosa: Darandina.


A manhã era clara. O narrador, já em horário de serviço, estava junto ao portão do prédio de uma instituição destinada a tratar de doenças mentais, onde trabalhava, provavelmente como médico. De repente, alguém gritou e o narrador, embora de relance, percebeu que um senhor distinto que passava por ali furtou a caneta-tinteiro da lapela do paletó de outro transeunte e saiu correndo, perseguido. Apesar de vestido socialmente, não tirou os sapatos para se refugiar no alto de uma palmeira da praça, na qual havia subido com rapidez.
Sem demora, formou-se, em volta da árvore, uma pequena multidão de curiosos que faziam comentários ou ameças. O narrador julgou tratar-se de um camelô importuno que queria vender canetas. Adalgiso, colega de serviço – a dupla estava de plantão – puxou-o pelo braço e lá se foram os dois, passando no meio do ajuntamento formado ao pé da árvore. As pessoas supunham que o tal homem fosse um doido que fugira e, por isso, facilitavam a passagem dos dois plantonistas, identificados assim pelo avental que usavam. Adalgiso comentou baixo que o fugitivo não devia ser um louco, pois tinha aparência de normal.
Lá de cima o homem discursava. Afirmava que não era demente, mas percebia que estava quase sendo tomado pela insanidade ao ver a humanidade enlouquecida. Por isso, resolveu internar-se num hospício, no qual estaria protegido quando a humanidade piorasse.
O narrador viu no tal homem a confirmação da teoria do professor Dartanhã: 40% das pessoas são loucos reconhecidos e grande parte das demais poderia receber o mesmo diagnóstico.
Adalgiso cochichou que o colega deles, Sandoval, reconheceu o homem da palmeira: era o Secretário das Finanças Públicas. Ia chamar as autoridades para decidirem o que fazer.
Enquanto não aparecia ninguém que tomasse providências, o tal falso louco se equilibrava muito bem e falava como um doido de verdade, que ele não era gente, que ele era uma ilusão.

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Comentário do conto Darandina de Guimarães Rosa

Darandina é um conto que transita do anedótico ao satírico. Seu título é mais um dentre os muitos neologismos criados pelo autor, no caso desse conto para significar atrapalhação, confusão. Inserido na coletânea de contos intitulada Primeiras estórias, a narrativa tematiza a loucura e questiona os limites entre esta e a normalidade. 
A ação desenvolve-se numa praça vizinha do hospício de uma pequena cidade não especificada, na qual um acontecimento inusitado revoluciona o cotidiano sossego do lugarejo, ou seja: um sujeito trajado com apuro e de ótima aparência rouba uma caneta, é surpreendido e, para fugir dos seus perseguidores, protagoniza um episódio espantoso que deixa perplexas as pessoas reunidas na praça: consegue subir, sem nenhuma dificuldade, uma alta palmeira e se acomoda no seu topo. 
Embaixo, os moradores da região acompanham atentamente os improfícuos esforços das autoridades, para convencerem o homem a voltar para o chão. Obstinadamente, ele resiste aos apelos, proferindo frases desconexas, enquanto despe toda a roupa, demonstrando extraordinário equilíbrio físico. 
Diante da situação vexatória em que se colocara o insano, um médico resolve subir pela escada dos bombeiros para tentar um dialogo. Todavia, logo percebe que o desvairado recuperara a lucidez e que, cheio de vergonha e constrangimento, pedia para ser socorrido. 
A multidão, sentindo-se ludibriada e privada do espetáculo, não aceita essa súbita sanidade e se dispõe a linchá-lo. Sentindo-se em risco, o ex-louco tem (ou finge) outro ataque de insanidade, gritando palavras de louvor à liberdade, motivo suficiente para a multidão viajar no delírio, aplaudi-lo e levá-lo nos ombros, como um herói. 
Essa insólita história passa a ser o ponto de partida para discussões, discursos, comentários em torno da loucura. O leitor se vê, assim, diante de um protagonista doente mental que profere frases desconexas, supostamente filosóficas e proféticas, capazes de levar a multidão de ouvintes ao mais exacerbado delírio. O que parecia um acontecimento trágico resvala para o plano do anedótico, da comicidade. Com efeito, instaura-se o tragicômico espetáculo da loucura coletiva, para o qual inexistem elementos lógicos que o possam explicar. 
Vale ainda ressaltar que, enquanto o homem faz espetáculo de sua loucura no alto da palmeira, as pessoas que estavam no chão assumiam comportamentos estranhos e avizinhados da insanidade, ou seja: a absurda e vazia discussão dos especialistas acerca da determinação da loucura do sujeito da árvore, quando o mais importante seria encontrarem uma solução para o impasse. Também não é menos insano o espetáculo de uma cidade inteira parada para seguir todas as etapas do desvario do desconhecido surtado. Todo esse conjunto de fatos justifica que se questione a tênue fronteira entre a normalidade e a loucura.
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Zenóbia Collares Moreira
Imagem banner: Andrea Mancine.  
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23 de setembro de 2011

Clarice Lispector: O Primeiro Beijo.



Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra. Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua. Ele a havia beijado. Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estou- rando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: 

Ele se tornara homem.

(In "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998)
Imagem: Pintura de Jacqueline Wiil


COMENTÁRIO
O conto tem início com um curto diálogo travado por um casal de namorados, ainda adolescente, que acabara de trocar o primeiro beijo. Picada por uma pontinha de ciúmes, a mocinha perguntou se ela era a primeira mulher beijada pelo rapazinho. Tal indagação provocou um Flashback na narrativa e o conseqüente retorno ao passado e às lembranças de uma tarde na qual fizera um passeio com a turma do colégio.
Sentado junto à janela do ônibus, “ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra,
se deixa invadir por variadas formas de percepções físicas e de sensações. Sua sensibilidade torna-se aguçada: Ora é a brisa que lhe acaricia a face e os cabelos com leveza, ora é a sede que o tortura, “uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo”. Depois, a brisa perde a frescura, aumenta a sensação de sede e de que a vida se esvaia, o desejo por água e o pressentimento dela. Por fim vem a sensibilidade prazerosa do primeiro gole e do encostar os lábios na pedra de um chafariz, que havia próximo à estrada.
Tudo teria sido banalmente normal, se o tal chafariz não tivesse um corpo feminino, esculpido em pedra e de cuja boca a água era vertida, detalhe este só percebido pelo garoto após ter dado os primeiros goles.
A visão do corpo feminino desnudo e o ato de beber a água com os lábios colados nos lábios da mulher de pedra provocou uma intensa agitação interior no garoto, seguidas de inesperadas reações físicas que remeteram a sentimentos e sensações desconhecidos, denunciadores da passagem do menino para uma diferente etapa de sua caminhada rumo à maturidade, ou seja: o despertar de sua sexualidade, a transposição da fronteira que separava o menino do adolescente.
“E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para a outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador de vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
“Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo estourando pelo rosto em brasa viva”. (§ 18-21)
Neste ponto, ele percebeu que “uma parte do seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva e isso nunca lhe tinha acontecido (§ 22); Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar- (§ 23); Até que, vinda da profundeza do seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto [...]” (§ 24)
A vida era inteiramente nova. (§ 23)
“O primeiro beijo” é um dos mais interessantes contos de Clarice Lispector. Nele, a autora mostra, de forma poética, plena de significados psicológicos e humanos, a inesquecível experiência vivenciada pelo menino, abordando de maneira sensível a bela passagem deste da infância para a adolescência, marcada pela súbita revelação de que “se tornara homem”.
São indiscutíveis a riqueza da descrição psicológica e a importância da escolha de uma temática relacionada à pureza e à inexperiência da puberdade. Chama a atenção, ainda, a leveza da linguagem, a habilidade no uso da “epifania”, assinalando o momento marcante da “revelação” que assoma de maneira súbita e impactante na mente do menino..
O processo epifânico vivenciado pelo personagem assinala o clímax da narrativa: de repente, diante de ocorrências mínimas, o menino se descobre e percebe a revelação de uma insuspeitada realidade atordoante, profunda e desconhecida, que se impõe e muda a sua vida, a sua maneira de estar no mundo.

By Zenóbia Collares Moreira


13 de setembro de 2011

Machado de Assis: O Apólogo


ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha: 
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê? 
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? 
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? 
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador? — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: 
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: — Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! 

COMENTÁRIO

Em sua vasta obra, Machado de Assis analisa e expõe de maneira implacável o lado obscuro da alma humana, suas fraquezas e idiossincrasias. Possuidor de um espírito arguto observador e de uma visão bem realista da sociedade burguesa do seu tempo, nada escapa a sua aguda percepção da debilidade de caráter dos seus contemporâneos. Assim, em muitos dos seus contos, a futilidade, a hipocrisia, a ambição, a inveja, a soberba, a inclinação ao adultério, dentre outras mazelas do homem são mais importantes em suas análises, que a ação propriamente dita. 

Vale lembrar que o apólogo é uma narrativa curta e, como a fábula, tem uma moral. Elas se distinguem pelas personagens: no apólogo são objetos inanimados (plantas, pedras, rios, relógios, moedas, estátuas etc.) e na fábula, geralmente, são animais. Assim sendo, no texto machadiano “Um apólogo” a agulha, a linha e o alfinete são personificações de valores e comportamentos humanos. A moral dessa história é expressa como conclusão, e tem no Alfinete o seu porta-voz: existem pessoas generosas que facilitam a vida de outras, ajudando-as, abrindo-lhe caminhos. Todavia, na hora da conquista do sucesso, da atribuição do mérito e dos aplausos quem recebe os benefícios, o reconhecimento e toda a glória é pessoa que foi ajudada, a oportunista e mal agradecida que nada fez para merecer os privilégios.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha


7 de setembro de 2011

Vergílio Ferreira: Uma esplanada sobre o mar.

 
A rapariga estava sentada a uma mesa numa esplanada sobre o mar. Vestia de branco e era loura, mas muito queimada do sol. Ao lado da mesa estava montado um guarda-sol giratório de pano azul que o criado veio regular, para acertar bem a sombra.O criado não perguntou nada e inclinou-se apenas e a rapariga pediu um refresco. Era a meio da tarde e o sol batia em cheio no mar, que se espelhava aqui e além em placas rebrilhantes. O céu estava muito azul e o ar era muito límpido, mas no limite do mar havia uma leve neblina e os barcos que aí passavam tinham os traços imprecisos, como se fossem feitos também de névoa. Na praia que ficava em baixo não havia quase ninguém e o mar batia em pequenas ondas na areia. A espuma era mais branca,iluminada do sol, e o ruído do mar era quase contínuo e espalhado por toda a extensão das águas.
A rapariga de vez em quando olhava ao lado a porta que dava para a esplanada e depois olhava o relógio. Voltava então a olhar o mar e ficava assim sem se mover. Tinha os olhos azuis muito brilhantes, contra a pele morena e o traço negro que os contornava. Foi num desses momentos de alheamento que o rapaz entrou. À porta da esplanada deteve-se um momento a orientar-se por entre as mesas ocupadas, mas logo localizou a rapariga sob o guarda-sol azul. Vestia calça branca e uma camisola amarelada manga curta. E era louro como a rapariga. Quando ela o reconheceu, fez-lhe sinal, mas ele já a tinha visto. Sentou-se-lhe ao pé e olhou em volta como se procurasse alguém. As mesas estavam quase todas ocupadas sob guarda-sóis coloridos e uma ou outra ao sol. Era quase tudo gente jovem, vestida de cores claras de praia.
– Desculpa, fiz-te esperar – disse ele.
– Cheguei há pouco, o criado nem trouxe ainda o que lhe pedi. E que é que me querias dizer?
O criado, com efeito, trazia o refresco para a rapariga, voltou-se para o rapaz a perguntar se tomava alguma coisa.
– Pode ser o mesmo – disse o rapaz.
O sol caía em cheio sobre a praia, iluminava o mar até ao limite do horizonte.
– Que é que me querias dizer? – perguntou de novo a rapariga. Ele sorriu-lhe e tomou-lhe uma das mãos que tinha sobre a mesa.
– Gosto de te ver – disse depois. – Gosto de te ver como nunca. Fica-te bem o vestido branco.
– Já mo viste tanta vez.
– Nunca to vi como hoje. Deve ser do sol e do mar. – Que é que querias?
– Deve ser dos olhos limpos com que to vejo hoje. O criado trouxe o novo refresco e ambos se calaram, tomando as bebidas.
– Não sei para que são tantos mistérios – disse a rapariga. –O melhor é dizeres logo tudo de uma vez.
– Não se trata de mistérios. Trata-se de estar certo o que te disser.
– Porque é que não há-de estar certo? – perguntou a rapariga. – Por tanta coisa – disse o rapaz. – Eu achei que te ficava bem o vestido e tu estranhaste que eu o dissesse.
– Já me tinhas visto o vestido muita vez. Foi só por isso.
– Nunca reparaste que há certas coisas que nós já vimos muitas vezes e que de vez em quando é como se fosse a primeira? – Nunca reparei – disse a rapariga.
– Nunca ficaste a olhar o mar muito tempo?
– Sim, já fiquei.
– Ou o lume de um fogão? – disse o rapaz.
– E que queres dizer com isso?
– Ou uma flor. Ou ouvir um pássaro cantar.
– Sim, sim.
– Não há nada mais igual do que o mar ou o lume ou uma flor. Ou um pássaro. E a gente não se cansa de os ver ou ouvir. Só é preciso que se esteja disposto para achar diferença nessa igualdade. Posso olhar o mar e não reparar nele, porque já o vi. Mas posso estar horas a olhar e não me cansar da sua monotonia.
O rapaz tinha o olhar absorto na extensão das águas e permaneceu calado algum tempo. As águas brilhavam com o reflexo do sol na agitação breve das ondas. A rapariga calava-se também, fitando o rapaz, porque percebia que ele não acabara de falar. Mas o rapaz calou-se como se não tivesse mais nada a dizer e ela perguntou:
– Mas que é que querias dizer-me?
– Mesmo as coisas mais banais são diferentes se alguma coisa importante se passou em nós.
– Se alguma coisa importante se passou em nós, não reparamos nas coisas – disse a rapariga, acendendo um cigarro.
– Se é coisa mesmo importante, tudo se nos transfigura – disse o rapaz, de olhar alheado no horizonte.
– Que coisa importante? – perguntou a rapariga.
Mas ele não respondeu e ela perguntou outra vez:
– Que coisa importante?
– Não sei. Uma coisa importante. Se te morresse o pai e a mãe e ficasses subitamente sozinha, o mundo transfigurava-se.
Se tivesses tentado o suicídio e te salvassem, mesmo as pedras e os cães começavam a ser diferentes. Estavas farta de conhecer os cães e as pedras, mas eles eram diferentes porque os olhavas com outros olhos.
E de novo se calou. Mas agora também a rapariga se calava na indistinta ameaça de não sabia o quê. O sol rodara um pouco,apanhava agora a cabeça do rapaz, incendiando-lhe o cabelo tombado para a testa. Levantou-se, tentou ela fazer girar o guarda-sol azul no pé de ferro articulado, seguro com um gancho recurvo e uma pequena corrente. Sentou-se de novo mas verificou que ficava ela agora com uma mancha de sol que lhe apanhava um ombro e o braço e uma pequena zona da face. Bebeu um pouco de refresco, olhou distraidamente a linha longínqua do limite do mar. Havia no rapaz uma notícia a dar, mas a rapariga não sabia como fazer a pergunta certa para estar certa com a resposta que queria ouvir. E de súbito disse:
– Pediste-me para estar aqui às quatro horas. Telefonaste-me duas vezes. Vieste à praia para isso. Porque é que afinal vieste?
– Mas tenho estado a explicar-te porque vim.
– Tens estado a explicar porque vieste. Mas falta o mais importante. Falta dizeres por exemplo que tudo está acabado entre nós. Falta dizer que essa tal tua amiga sempre conseguiu o que queria. Falta dizer que nunca me achaste tão bela como hoje,mas que já me não podes amar. Falta dizer isso, mas tens de preparar o terreno, porque a coragem nunca foi o teu forte e julgas que não é o meu.
Falava devagar mas com uma grande intensidade interior, e ficou assim ruborizada, os olhos brilhantes de violência. Orapaz ouviu-a e não respondeu. Pensou primeiro concordar com a rapariga e dizer-lhe talvez que já a não amava. E evitava assim ter de lhe dizer a verdade. Quando ela depois a soubesse, talvez já não sofresse, talvez o esquecesse mais depressa. Mas sofreria ele por aceitar uma mentira que ia contra o que sentia. Julgava ser mais fácil dizer tudo e via agora que não.
– Nada disso é verdade – disse por fim.
O mar brilhava cada vez mais. As placas incandescentes tremeluziam nas águas e faziam semicerrar os olhos ao rapaz. Vergou-se para a mesa e bebeu um gole de refresco.
– Há coisas que é difícil dizerem-se – continuou. – É preciso que tudo esteja de acordo. Com esta luz e esta alegria de Verão e este bem-estar de uma esplanada, eu não podia dizer-te, por exemplo, que me vou matar.
– Que estupidez. Mas não tentes desconversar.
– Seria estúpido – disse o rapaz. – Não vou de facto matar-me. Mas não tinha outra maneira de to dizer, se fosse. E seria estúpido, porque tudo estava em desacordo. Não era coisa que se dissesse a uma hora de praia e de sol. A rapariga ficou a olhá-lo algum tempo intensamente, a tentar ouvir-lhe o que já não dizia.
– Nunca está certa, aliás, seja a que hora for – continuou o rapaz. – Tudo pode estar certo talvez a qualquer hora. Menos essa banalidade ridícula da morte. De tudo se pode falar, menos dela. Nem falar, nem filosofar, nem fazer seja o que for que a tenha a ela em conta. Há uma aliança contra ela como contra uma infâmia. Ou como se o não falar a excluísse. E é a única verdade perfeita.
– Mas é uma conversa idiota – disse a rapariga fitando o companheiro de lado, a entender.
– Tudo é erro e ludíbrio: o triunfo, o poder, as ideias, mesmo as matemáticas. Tu pensa no que quiseres e verás que tudo erra. Há só uma coisa que não. E é do que se não pode falar.
O sol baixara um pouco e estendia agora uma estrada de lume pelas águas. Um barco à vela atravessou-a e um momento foi como se as chamas o envolvessem. O rapaz calou-se e a rapariga não sabia que perguntar. Ou tinha várias perguntas, mas não sabia qual estaria certa.
– Sempre fazes exame em Outubro? – disse ela por fim. Tentava contorná-lo ou distraí-lo, para depois o surpreender onde ele não esperasse.
– Não devo fazer – disse o rapaz. – E mesmo não seria nunca em Outubro. Os exames de Outubro são sempre em Novembro ou Dezembro. Às vezes vão mesmo até ao segundo período.
– Por que é que não deves fazer? – perguntou a rapariga.
O rapaz olhou-a no seu vestido de praia, na cor morena da pele, nos cabelos claros que lhe caíam sobre os ombros, e outra vez sentiu que não sabia como responder. Na praia havia já alguns veraneantes à sombra dos toldos ou estendidos ao sol. Um ou outro mergulhava mesmo nas ondas cheias de luz.
– Por que não deves fazer? – insistiu a rapariga. – Tens ainda uns meses para te preparares.
– Creio que um mês chegava-me – respondeu o rapaz. – Mas não adiantava nada.
– Por que não adiantava? – perguntou a rapariga.
Ele ficou em silêncio outra vez, olhando o mar. Tinha uma resposta certa, mas tinha medo dela como se ele próprio a não soubesse.
Depois disse:
– O médico foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia-a-dia. E é extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia-a-dia. E três meses no máximo.
– Espera! Três meses como? – disse a rapariga, subitamente iluminada.
Pôs-lhe a mão no braço e olhava-o fixamente. Ele olhou-a também e ambos ficaram a tentar entender-se em silêncio. Depois ela tirou a mão do braço do rapaz e acendeu novo cigarro. O sol escorria do alto e inundava-lhes agora toda a mesa. O rapaz tomou o copo e bebeu um gole devagar.
– Diz outra vez – repetiu a rapariga. – Deixa-me entender. Diz outra vez, para entender tudo muito bem.
– Tu vais dizer que tudo isto é estúpido e eu sei bem que é. Mas se a gente pensar bem, a estupidez é só nossa.
– Sim. Mas explica tudo muito bem. Desde o princípio. Devagarinho.
– A estupidez é só nossa, porque a vida não é verdade. Mas é a única coisa em que se acredita – disse o rapaz.
– Sim – repetiu a rapariga. – Mas era bom que explicasses desde o princípio. Devagarinho. Para eu não acreditar também. Está um dia cheio de sol.
– Mas a explicação é simples – disse ele, balouçando o líquido no fundo do copo. – Eu vou explicar tudo. Eu vou.
Estava uma tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar quase não chegava ali.

(in Contos, 6.a ed., pp. 243-250, Bertrand Editora, Lisboa, 1995, 256