29 de janeiro de 2011

Famigerado, conto de Guimarães Rosa


Famigerado, conto que faz parte da obra Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, organiza-se em torno de um fato revestido de certa comicidade. Nele, Guimarães Rosa tematiza a importância da linguagem, mostrando que o conhecimento que se tem ou que não se tem é o bastante para revelar o grau de cultura do indivíduo e até o seu nível social. O conto expõe dois tipos de poder antagônicos e em tensão: o poder da violência e das armas de Damázio, e o poder da instrução, do conhecimento e da inteligência do médico.

FAMIGERADO 

Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela. Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida. Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar. Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou: -"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada... Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza. — "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..." Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava: — "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..." Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar. O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá: — "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...? Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação? — "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..." Se sério, se era. Transiu-se-me. — "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?" Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes: — Famigerado? — "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio: — "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..." Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio. — Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"... — "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?" — Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos... — "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?" — Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito... — "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?" Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse: — Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!... — "Ah, bem!..." — soltou, exultante. Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação.  Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto. ____________________________________________ Guimarães Rosa Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 13
 
 

Comentário do conto "Famigerado", de G. Rosa.



A história narrada é simples: O narrador, um médico do interior, recebe a visita de quatro homens rudes do sertão, liderados por Damázio, conhecido e temido assassino da região. Este quer que o médico, a pessoa culta do lugar, o esclareça acerca do significado da palavra “famigerado”, pois a ouviu de um moço do governo: -Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: famisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... famílias-gerado? 

Diante dos jagunços com caras de pouco amigos, o narrador, inicialmente, mal consegue dominar o medo: “Tomei-me nos nervos”, O medo. O medo me miava”. Mas, logo a onda de medo é controlada por seu temperamento calmo e por sua agilidade mental, típica de pessoas inteligentes que aprenderam a controlar a emoção, como revelam os seguintes trechos: “Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso”; “Convidei-o a desmontar, a entrar”; “Muito demacio, mentalmente, comecei a me organizar.”; “Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios.”; “-Famigerado?- habitei preâmbulos.”;

Claro que o médico pressentiu que a pergunta não era inocente e logo teve a certeza de que a situação era tensa. O facínora queria mesmo saber era se aquela palavra seria motivo para a uma desforra ou não. Temeroso de revelar a verdadeira intenção do moço do governo, ao chamar o jagunço de “famigerado”, o médico resolve mentir, por temer a violência de Damázio contra o tal “moço”. Se tivesse revelado o sentido dicionarizado do termo “famigerado” ao belicoso Damázio, estaria, sem sombras de dúvidas, decretando a sentença de morte do infeliz que o insultou.

Todavia, talvez por causa da insegurança inicial ou por não estar preparado para elaborar uma resposta melhor, assim de supetão, o médico dá um significado positivo. Porém usando duas palavras desconhecidas para o bronco Damázio, afirmando que o termo “famigerado” significa “inóxio”, “douto”. Confrontado com a estranheza do termo “inóxio”, o jagunço sem compreender o significado da palavra, decerto nunca ouvida antes, fica sem saber que “inóxio” significa “inócuo”, “inocente”. Daí, o seu pedido ao narrador para que lhe dê o significado da palavra “famigerado”  usando uma linguagem comum, popular. 

­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­O narrador, já mais seguro e com domínio da situação, engana o jagunço, dizendo-lhe que a palavra “famigerado” não é ofensiva, significando “célebre”, “notório”, “notável”. O assassino, depois de tranqüilizado e satisfeito com a resposta recebida, agradece e vai embora. Antes, porém, tece um elogio ao saber do médico, dizendo: Não há como as grandezas machas de uma pessoa instruída.

O narrador mentiu e enganou o jagunço ao dizer a verdade: que “famigerado” significa  “famoso, importante, que merece respeito”, conforme consta no dicionário, mesmo sabendo que é usado por pouquíssimas pessoas de saber mais aprimorado, pois a maioria usa esse termo de forma equivocada, atribuindo-lhe o sentido de “maldito, “desgraçado”, “perverso”, malvado, etc. É muito provável que tenha sido com esse sentido que o moço do governo usou a palavra famigerado, com a intenção de desqualificar o jagunço mal afamado.

A fala final do narrador deixou nas entrelinhas, este último significado, logo após Damázio  pedir-lhe  para confirmar se não se constituiu uma ofensa ter sido chamado de “famigerado” e ouve como resposta o narrador dizer: Olhe: eu, com o Sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!.. Aqui vale salientar a esperteza e o refinado humor do narrador, ao fazer uso do significado depreciativo de “famigerado”, que o ignorante Damázio não consegue perceber.

Para o médico a ironia serviu como um sutil desabafo do que realmente desejara ser ao se ver diante do perigoso jagunço: ser tão célebre pela periculosidade, quanto era o temido Damázio, para não correr o risco de ser forçado a confrontado-lo usando como defesa e proteção apenas o poder das palavras e a esperteza de “gambelar” o malfeitor. Este, aliás, ficou satisfeito com a enganosa explicação para o vocábulo que o atormentava.

De fato, mesmo sendo culto, formado e experiente, naquela hora em que se sentiu tomado pelo medo se sofrer uma violência, o que mais queria era ser tão “desgraçado”, tão “maldito” e “perverso” quanto era Damázio. Mas o bandido não tinha a mínima condição para perceber essa verdade, era bronco demais para captar a malícia e a sutileza do enunciado. É por isso que partiu, em sua bendita ignorância, ridiculamente desmanchando-se de felicidade e de alívio, sem se dar conta de que fora enganado pelo médico. Logo ele que, fanfarrão e metido a valentão, se gabava de nunca ter sido “gambelado” por ninguém.
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Zenóbia Collares Moreira Cunha.


21 de janeiro de 2011

Arroz do Céu, conto de José Rodrigues Miguéis.

Ao longo dos passeios de Nova Iorque, por sobre as estações e galerias do subway, abrem-se respiradouros gradeados por onde sai de tudo: o sol e a chuva, o luar e a neve, luvas, lunetas e botões, papelada, chewing-gum, tacões de sapatos de mulheres que ficam entalados e até dinheiro. Ás vezes, lá no fundo, no lixo acumulado ou em poças de água estagnada, brilham moedas de níquel e mesmo de prata. Os garotos ajoelham de nariz colado às grades, tentando lobrigar tesouros na obscuridade donde sopra um hálito húmido e oleoso e o cheiro dos freios queimados. Fazem prodígios de habilidade e obstinação para pescar as moedas perdidas. Alguns têm êxito nisso, mas depois engalfinham-se em disputas tremendas sobre a posse e a partilha do tesouro: nunca se sabe quem foi que viu primeiro.
Outros, quando a colheita promete, chegam a arriscar nisso algum capital: juntam posses, e entram dois, é quanto basta, no subway; uma vez lá dentro, trepam sub-repticiamente aos respiradouros, o que é difícil operação de acrobacia, para colher aquele dinheiro-de-ninguém, enquanto um ou mais camaradas vigilantes os vão guiando cá de fora. Também, os há que entram sem pagar, por entre as pernas da freguesia e agachando-se por baixo dos torniquetes.
O limpa-vias trabalhava há muitos anos no subway, sempre de olhos no chão. Uma topeira, um rato dos canos. Picava papéis na ponta de um pau com um prego, e metia-os no saco. Varria milhões de pontas de cigarros, na maioria quase intactos, de fumadores impacientes, raspava das plataformas o chewing-gum odioso, limpava as latrinas, espalhava desinfetantes, ajudava a pôr graxa nas calhas, polvilhava as vias de um pó branco e misterioso, e todas as vezes que o camarada da lanterna soltava um apito estrídulo lá vem o comboio! – ele encolhia-se contra a parede negra, onde escorriam água de infiltração, na estreita passagem de serviço. Até já tinha ajudado a recolher pedaços de cadáveres, de gente que se atirava para debaixo dos trens; e transportava os corpos exangues de velhos que de repente se lembravam de morrer de ataque cardíaco, nas horas de maior ajuntamento, uns e outros perturbando o horário e provocando a curiosidade casual e momentânea dos passageiros apressados. Sempre de olhos no chão, bisonho e calado, como quem nada espera do Alto, e não esperava. 
A vida dele vinha toda do chão imundo e viscoso. Nem sequer olhava a lívida claridade que resvala dos respiradouros para o negrume interior, onde tremeluzem lâmpadas elétricas, entre as pilastras inumeráveis daquela floresta subterrânea metalizada: nunca lhes tinham mandado limpar. Eram provavelmente o domínio exclusivo de operários especializados, membros de outro sindicato, que ele não conhecia. Nem talvez soubesse que existiam os respiradouros. Era estrangeiro, imigrante, como tanta gente, não brincava nem vadiara na voragem empolgante das ruas de Nova Iorque, e vivia perfeitamente resignado à sua obscuridade. Devia aquele emprego a um camarada que era membro dum clube onde mandavam homens de peso, mas ele de política não entendia nada, nem fazia perguntas. Como tinha nascido na Lituânia, ou talvez na Estônia, só falava em monossílabos; e, debaixo da pátina oleosa e negra que o ar do subway nela imprimira com o tempo, a sua face era incolor e a raça indistinta. Antes disso, tinha trabalhado em escavações, uma “toupeira”. Este emprego era muito melhor, embora também fosse subterrâneo. E não tinha que falar o inglês, que mal entendia.
Ora, à esquina de certa rua, no Uptown, há uma igreja, a de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, a todo o comprimento de cuja fachada barroca e cinzenta os respiradouros do subway formam uma longa passerelle de aço arrendado. Os casamentos são freqüentes, ali, por ser chic a paróquia e imponente a igreja. O arroz chove às cabazadas em cima dos noivos, à saída da cerimônia, num grande estrago de alegria. Metade dele some-se logo pelas grelhas dos respiradouros, outra parte fica espalhada nas placas de cimento do passeio. Depois dos casamentos, o sacristão ou porteiro da igreja, de cigarro ao canto da boca, varre o arroz para dentro das grades, por comodidade. Provavelmente é irlandês, o arroz não lhe interessa, nem se ocupa de pombos: pombos é lá com os italianos, que, apesar de se dizerem católicos, são uma espécie de pagãos. O que se derramou no pavimento da rua, lá fica: é com os varredores municipais.
Volta e meia há casórios, sobretudo no bom tempo, ou aos domingos. É um desperdício de arroz, não sei donde vem o costume: talvez seja prenúncio votivo de abundância, ou um símbolo de “Crescei e multiplicai-vos” (com arroz). A gente pára a olhar, e tem vontade de perguntar: “ A como está o arroz de primeira cá na freguesia?”
Aquela chuva de arroz atravessa as grades, resvala no plano inclinado de respiradouro, e, se não adere à sujidade pegajosa do chewing-gum (o bairro é pouco dado a mastigar o chicle), ressalta para dentro do subterrâneo, numa plataforma de serviço vedada aos passageiros.
A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a estalar-lhe debaixo da botifarras, o limpa-vias não fez caso: varreu-os com o resto  do lixo para dentro do saco cilíndrico, com um aro na boca. Mas como ia agora por ali com mais freqüência, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede.. Mas o respiradouro, se bem me compreendem, obliquava como uma chaminé, e a grade, ela própria, ficava-lhe invisível do interior. Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros, sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem galinha.
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá-lo, abaixou-se , juntou com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do “macaca”. Chegando a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou-se, e às vezes dizia-lhe: “Vê lá se hoje há arroz, acabou-se-nos o que tínhamos em casa.” Confiada naquele remedeio de vida!
O limpa-vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão, sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma colheita regular. Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o levava à família. Ignorando que lá em cima era a igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom-tom, não sabia a que atribuir o fenômeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e as igrejas não se distinguem.
E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga dos filhos. Sem ele Ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objeto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...
O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam.

                                                            (José Rodrigues MiguéisGente de terceira classe)


1 de janeiro de 2011

Comentário do conto "Arroz do Céu", de José R. Miguéis.

Nascido em Lisboa em 1901 e falecido em Nova York em 1980, José Rodrigues Miguéis viveu exilado durante vários anos. Seu livro Gente da Terceira Classe, de onde selecionamos o conto “Arroz do céu”, como o nome indica, é uma obra neorealista que focaliza a temática da emigração e da pobreza, numa perspectiva crítica engajada com a causa do proletariado.

Escrito quando Miguéis residia em Nova York, o conto narra uma história que se afirma como uma lição de vida e um excelente tema para a nossa reflexão acerca da exclusão social e das desigualdades de oportunidades num país de imigração, a situação de extrema pobreza e a vida desumanizada dos emigrantes, em sua luta pela sobrevivência na cidade grande.

O conto «Arroz do Céu» aborda o cotidiano de um emigrante pobre e ignorante que trabalha como limpa-vias no metropolitano de Nova York e, muito agradecidamente, vê no arroz que encontra fartamente espalhado no chão, com estranha freqüência, um maná que lhe é especialmente enviado por Deus. A partir deste fato, instaura-se na narrativa uma inevitável oposição entre a terra e o céu, entre o espaço fechado no interior do subterrâneo e o espaço aberto do seu exterior. O espaço no subsolo, fechado, insalubre e pegajoso representa o mundo obscuro e marginalizado do Limpa-vias; enquanto o exterior ensolarado e povoado é aberto para o mundo social: as calçadas de Nova York, os garotos que nelas passam o tempo em tropelias e a igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, onde se realizam os casamentos da elite.

Todo o equívoco que constitui a espinha dorsal da narrativa tem a sua gênese no costume tradicional de atirar arroz sobre noivos para que sejam felizes e prósperos. O arroz abundante, carolino, de primeira qualidade, espalha-se pela calçada, resvalando para as grelhas dos respiradouros ou sendo varrido para elas pelo sacristão ou porteiro da igreja, indo parar no interior do subterrâneo, onde é recolhido pelo limpa-vias. Levado para casa, este arroz bendito começa a alimentar fartamente sua família.

A situação da personagem representa, com realismo, a vida de muitos imigrantes que não conseguem integrar-se na sociedade americana, sequer conseguem aprender o idioma do novo país que escolheram para viver. Como desconhecem o que se passa fora do seu mundo, vivem de olhos no chão, apenas atentos ao trabalho rotineiro e alienante que executam, reduzidos a uma parcial e limitada visão do mundo. O limpa vias vive fechado em si mesmo e ao redor da sua vida familiar, da qual poucas informações nos são dadas pelo narrador que opta por manter uma onisciência limitada.

Vivendo durante todo o dia no interior do subterrâneo, alienado de tudo, perde as suas prerrogativas de ser humano, marginaliza-se de uma sociedade na qual, por diversos motivos, não consegue se integrar. O próprio desconhecimento do idioma impede-lhe o acesso à realidade político-social do país e ao conhecimento dos costumes sociais que regem a vida dos que habitam no centro da cidade. Nem seu nome é mencionado, tampouco se sabe ao certo qual seja o seu país de origem.Vive num total alheamento do mundo exterior que serve de teto aos subterrâneos onde estão as vias férreas por onde desliza o metro. Sua vida resumia-se a trabalhar e a sua subrevivência vinha toda do chão viscoso e imundo.

Contrastando e opondo-se à vida obscura e enclausurada e à personalidade do limpa-vias o conto mostra um grupo ruidoso e ativo transitando “na voragem empolgante das ruas da grande cidade”: os garotos que tentam encontrar eventuais tesouros escondidos no lixo ou nas poças de água do subway. “Fazem prodígios de habilidade e obstinação para pescar as moedas perdidas”.

A vida pulsa acima do mundo subterrâneo que abriga o emigrante. Todavia, esse tipo de aventura nem passaria pela idéia do imigrante. Sua maior aventura lhe vem surpreendentemente do chão, a partir do momento em que ele começa a perceber um “milagre” que se repete frequentemente: o de encontrar arroz de qualidade, espalhado na galeria do subterrâneo. Parecia-lhe mesmo um milagre: “O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz?”, prodigiosamente caído do “Alto”.

É o arroz que faz o limpa-vias olhar, pela primeira vez, para o Alto, o “céu” na visão da personagem, o equivalente à Providência Divina, contrastando com toda a miséria de sua vida, vivida no patamar mais ínfimo da inferioridade: o chão, os limitados espaços em que transita, as privações do dia-a-dia, o isolamento, o abandono e a sua quase inexistência como ser social.O limpa-vias desconhecia os ritos dos casamentos americanos: “No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha”.

No final do conto repete-se, com alterações, a enumeração dos elementos que vêm de cima. "E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objeto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-Lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu... O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam".

Em sua ingenuidade e ignorância, o imigrante se satisfaz com a explicação que lhe veio espontaneamente, do âmago da sua fé, sem se preocupar com a busca de outras explicações para o fato: simplesmente ele “encolheu os ombros, sem entender”. O que entendia era aquela ajuda divina que passou a ser o “remedeio de vida” com o qual a mulher conta sempre que é consumido todo o suprimento de arroz que têm em casa: “Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos”. Ironicamente, o desperdício inconseqüente dos ricos que, como lixo, é varrido para as galerias do metro, é o alimento que falta na mesa dos pobres.

A solidariedade humana, típica nas narrativas de José Rodrigues Miguéis, constitui o cerne dos seus posicionamentos críticos, merecendo especial atenção a crítica a uma sociedade perdulária, na qual impera o consumismo fútil (a quantidade de arroz desperdiçada nos casamentos do uptown) que contrasta brutalmente com a miséria e com as necessidades prementes de sobrevivência do imigrante e sua família. Estes funcionam como metáfora da situação de muitos outros imigrantes que penam no submundo do desemprego ou dos empregos insalubres e mal remunerados, nas grandes metrópoles de países ditos civilizados e potências econômicas do primeiro mundo.