21 de janeiro de 2011

Arroz do Céu, conto de José Rodrigues Miguéis.

Ao longo dos passeios de Nova Iorque, por sobre as estações e galerias do subway, abrem-se respiradouros gradeados por onde sai de tudo: o sol e a chuva, o luar e a neve, luvas, lunetas e botões, papelada, chewing-gum, tacões de sapatos de mulheres que ficam entalados e até dinheiro. Ás vezes, lá no fundo, no lixo acumulado ou em poças de água estagnada, brilham moedas de níquel e mesmo de prata. Os garotos ajoelham de nariz colado às grades, tentando lobrigar tesouros na obscuridade donde sopra um hálito húmido e oleoso e o cheiro dos freios queimados. Fazem prodígios de habilidade e obstinação para pescar as moedas perdidas. Alguns têm êxito nisso, mas depois engalfinham-se em disputas tremendas sobre a posse e a partilha do tesouro: nunca se sabe quem foi que viu primeiro.
Outros, quando a colheita promete, chegam a arriscar nisso algum capital: juntam posses, e entram dois, é quanto basta, no subway; uma vez lá dentro, trepam sub-repticiamente aos respiradouros, o que é difícil operação de acrobacia, para colher aquele dinheiro-de-ninguém, enquanto um ou mais camaradas vigilantes os vão guiando cá de fora. Também, os há que entram sem pagar, por entre as pernas da freguesia e agachando-se por baixo dos torniquetes.
O limpa-vias trabalhava há muitos anos no subway, sempre de olhos no chão. Uma topeira, um rato dos canos. Picava papéis na ponta de um pau com um prego, e metia-os no saco. Varria milhões de pontas de cigarros, na maioria quase intactos, de fumadores impacientes, raspava das plataformas o chewing-gum odioso, limpava as latrinas, espalhava desinfetantes, ajudava a pôr graxa nas calhas, polvilhava as vias de um pó branco e misterioso, e todas as vezes que o camarada da lanterna soltava um apito estrídulo lá vem o comboio! – ele encolhia-se contra a parede negra, onde escorriam água de infiltração, na estreita passagem de serviço. Até já tinha ajudado a recolher pedaços de cadáveres, de gente que se atirava para debaixo dos trens; e transportava os corpos exangues de velhos que de repente se lembravam de morrer de ataque cardíaco, nas horas de maior ajuntamento, uns e outros perturbando o horário e provocando a curiosidade casual e momentânea dos passageiros apressados. Sempre de olhos no chão, bisonho e calado, como quem nada espera do Alto, e não esperava. 
A vida dele vinha toda do chão imundo e viscoso. Nem sequer olhava a lívida claridade que resvala dos respiradouros para o negrume interior, onde tremeluzem lâmpadas elétricas, entre as pilastras inumeráveis daquela floresta subterrânea metalizada: nunca lhes tinham mandado limpar. Eram provavelmente o domínio exclusivo de operários especializados, membros de outro sindicato, que ele não conhecia. Nem talvez soubesse que existiam os respiradouros. Era estrangeiro, imigrante, como tanta gente, não brincava nem vadiara na voragem empolgante das ruas de Nova Iorque, e vivia perfeitamente resignado à sua obscuridade. Devia aquele emprego a um camarada que era membro dum clube onde mandavam homens de peso, mas ele de política não entendia nada, nem fazia perguntas. Como tinha nascido na Lituânia, ou talvez na Estônia, só falava em monossílabos; e, debaixo da pátina oleosa e negra que o ar do subway nela imprimira com o tempo, a sua face era incolor e a raça indistinta. Antes disso, tinha trabalhado em escavações, uma “toupeira”. Este emprego era muito melhor, embora também fosse subterrâneo. E não tinha que falar o inglês, que mal entendia.
Ora, à esquina de certa rua, no Uptown, há uma igreja, a de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, a todo o comprimento de cuja fachada barroca e cinzenta os respiradouros do subway formam uma longa passerelle de aço arrendado. Os casamentos são freqüentes, ali, por ser chic a paróquia e imponente a igreja. O arroz chove às cabazadas em cima dos noivos, à saída da cerimônia, num grande estrago de alegria. Metade dele some-se logo pelas grelhas dos respiradouros, outra parte fica espalhada nas placas de cimento do passeio. Depois dos casamentos, o sacristão ou porteiro da igreja, de cigarro ao canto da boca, varre o arroz para dentro das grades, por comodidade. Provavelmente é irlandês, o arroz não lhe interessa, nem se ocupa de pombos: pombos é lá com os italianos, que, apesar de se dizerem católicos, são uma espécie de pagãos. O que se derramou no pavimento da rua, lá fica: é com os varredores municipais.
Volta e meia há casórios, sobretudo no bom tempo, ou aos domingos. É um desperdício de arroz, não sei donde vem o costume: talvez seja prenúncio votivo de abundância, ou um símbolo de “Crescei e multiplicai-vos” (com arroz). A gente pára a olhar, e tem vontade de perguntar: “ A como está o arroz de primeira cá na freguesia?”
Aquela chuva de arroz atravessa as grades, resvala no plano inclinado de respiradouro, e, se não adere à sujidade pegajosa do chewing-gum (o bairro é pouco dado a mastigar o chicle), ressalta para dentro do subterrâneo, numa plataforma de serviço vedada aos passageiros.
A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a estalar-lhe debaixo da botifarras, o limpa-vias não fez caso: varreu-os com o resto  do lixo para dentro do saco cilíndrico, com um aro na boca. Mas como ia agora por ali com mais freqüência, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede.. Mas o respiradouro, se bem me compreendem, obliquava como uma chaminé, e a grade, ela própria, ficava-lhe invisível do interior. Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros, sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem galinha.
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá-lo, abaixou-se , juntou com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do “macaca”. Chegando a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. Ela habituou-se, e às vezes dizia-lhe: “Vê lá se hoje há arroz, acabou-se-nos o que tínhamos em casa.” Confiada naquele remedeio de vida!
O limpa-vias nunca perguntou donde é que chovia tanto grão, sobretudo no bom tempo, pelo Verão, e aos domingos, que até parecia uma colheita regular. Embrulhava-o num jornal ou metia-o num cartucho, e assim o levava à família. Ignorando que lá em cima era a igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, e como tal de bom-tom, não sabia a que atribuir o fenômeno. Pelo lado da raiz, no subway, os palácios, os casebres e as igrejas não se distinguem.
E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga dos filhos. Sem ele Ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objeto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu...
O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam.

                                                            (José Rodrigues MiguéisGente de terceira classe)


Nenhum comentário: