1 de janeiro de 2011

Comentário do conto "Arroz do Céu", de José R. Miguéis.

Nascido em Lisboa em 1901 e falecido em Nova York em 1980, José Rodrigues Miguéis viveu exilado durante vários anos. Seu livro Gente da Terceira Classe, de onde selecionamos o conto “Arroz do céu”, como o nome indica, é uma obra neorealista que focaliza a temática da emigração e da pobreza, numa perspectiva crítica engajada com a causa do proletariado.

Escrito quando Miguéis residia em Nova York, o conto narra uma história que se afirma como uma lição de vida e um excelente tema para a nossa reflexão acerca da exclusão social e das desigualdades de oportunidades num país de imigração, a situação de extrema pobreza e a vida desumanizada dos emigrantes, em sua luta pela sobrevivência na cidade grande.

O conto «Arroz do Céu» aborda o cotidiano de um emigrante pobre e ignorante que trabalha como limpa-vias no metropolitano de Nova York e, muito agradecidamente, vê no arroz que encontra fartamente espalhado no chão, com estranha freqüência, um maná que lhe é especialmente enviado por Deus. A partir deste fato, instaura-se na narrativa uma inevitável oposição entre a terra e o céu, entre o espaço fechado no interior do subterrâneo e o espaço aberto do seu exterior. O espaço no subsolo, fechado, insalubre e pegajoso representa o mundo obscuro e marginalizado do Limpa-vias; enquanto o exterior ensolarado e povoado é aberto para o mundo social: as calçadas de Nova York, os garotos que nelas passam o tempo em tropelias e a igreja de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, onde se realizam os casamentos da elite.

Todo o equívoco que constitui a espinha dorsal da narrativa tem a sua gênese no costume tradicional de atirar arroz sobre noivos para que sejam felizes e prósperos. O arroz abundante, carolino, de primeira qualidade, espalha-se pela calçada, resvalando para as grelhas dos respiradouros ou sendo varrido para elas pelo sacristão ou porteiro da igreja, indo parar no interior do subterrâneo, onde é recolhido pelo limpa-vias. Levado para casa, este arroz bendito começa a alimentar fartamente sua família.

A situação da personagem representa, com realismo, a vida de muitos imigrantes que não conseguem integrar-se na sociedade americana, sequer conseguem aprender o idioma do novo país que escolheram para viver. Como desconhecem o que se passa fora do seu mundo, vivem de olhos no chão, apenas atentos ao trabalho rotineiro e alienante que executam, reduzidos a uma parcial e limitada visão do mundo. O limpa vias vive fechado em si mesmo e ao redor da sua vida familiar, da qual poucas informações nos são dadas pelo narrador que opta por manter uma onisciência limitada.

Vivendo durante todo o dia no interior do subterrâneo, alienado de tudo, perde as suas prerrogativas de ser humano, marginaliza-se de uma sociedade na qual, por diversos motivos, não consegue se integrar. O próprio desconhecimento do idioma impede-lhe o acesso à realidade político-social do país e ao conhecimento dos costumes sociais que regem a vida dos que habitam no centro da cidade. Nem seu nome é mencionado, tampouco se sabe ao certo qual seja o seu país de origem.Vive num total alheamento do mundo exterior que serve de teto aos subterrâneos onde estão as vias férreas por onde desliza o metro. Sua vida resumia-se a trabalhar e a sua subrevivência vinha toda do chão viscoso e imundo.

Contrastando e opondo-se à vida obscura e enclausurada e à personalidade do limpa-vias o conto mostra um grupo ruidoso e ativo transitando “na voragem empolgante das ruas da grande cidade”: os garotos que tentam encontrar eventuais tesouros escondidos no lixo ou nas poças de água do subway. “Fazem prodígios de habilidade e obstinação para pescar as moedas perdidas”.

A vida pulsa acima do mundo subterrâneo que abriga o emigrante. Todavia, esse tipo de aventura nem passaria pela idéia do imigrante. Sua maior aventura lhe vem surpreendentemente do chão, a partir do momento em que ele começa a perceber um “milagre” que se repete frequentemente: o de encontrar arroz de qualidade, espalhado na galeria do subterrâneo. Parecia-lhe mesmo um milagre: “O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz?”, prodigiosamente caído do “Alto”.

É o arroz que faz o limpa-vias olhar, pela primeira vez, para o Alto, o “céu” na visão da personagem, o equivalente à Providência Divina, contrastando com toda a miséria de sua vida, vivida no patamar mais ínfimo da inferioridade: o chão, os limitados espaços em que transita, as privações do dia-a-dia, o isolamento, o abandono e a sua quase inexistência como ser social.O limpa-vias desconhecia os ritos dos casamentos americanos: “No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha”.

No final do conto repete-se, com alterações, a enumeração dos elementos que vêm de cima. "E foi assim que aquela chuva benéfica, de arroz polido, carolino, de primeira, acabou por lhe dar a noção concreta de uma Providência. O arroz vinha do Céu, como a chuva, a neve, o sol e o raio. Deus, no Alto, pensava no limpa-vias, tão pobre e calado, e mandava-lhe aquele maná para encher a barriga aos filhos. Sem ele ter pedido nada. Guardou segredo – é mau contar os prodígios com que a graça divina nos favorece. Resignou-se a ser o objeto da vontade misericordiosa do Senhor. E começou a rezar-Lhe fervorosamente, à noite, o que nunca fizera: ao lado da mulher. Arroz do Céu... O Céu do limpa-vias é a rua que os outros pisam".

Em sua ingenuidade e ignorância, o imigrante se satisfaz com a explicação que lhe veio espontaneamente, do âmago da sua fé, sem se preocupar com a busca de outras explicações para o fato: simplesmente ele “encolheu os ombros, sem entender”. O que entendia era aquela ajuda divina que passou a ser o “remedeio de vida” com o qual a mulher conta sempre que é consumido todo o suprimento de arroz que têm em casa: “Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos”. Ironicamente, o desperdício inconseqüente dos ricos que, como lixo, é varrido para as galerias do metro, é o alimento que falta na mesa dos pobres.

A solidariedade humana, típica nas narrativas de José Rodrigues Miguéis, constitui o cerne dos seus posicionamentos críticos, merecendo especial atenção a crítica a uma sociedade perdulária, na qual impera o consumismo fútil (a quantidade de arroz desperdiçada nos casamentos do uptown) que contrasta brutalmente com a miséria e com as necessidades prementes de sobrevivência do imigrante e sua família. Estes funcionam como metáfora da situação de muitos outros imigrantes que penam no submundo do desemprego ou dos empregos insalubres e mal remunerados, nas grandes metrópoles de países ditos civilizados e potências econômicas do primeiro mundo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Hi, I am Thomas Gittins from Cornell University. Glad to read your blog.
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Anônimo disse...

Perfeito texto, trabalha a reflexão quanto a sensibilidade diante dos fatos constatados em nosso cotidiano, Acostumamos alegar a falta de tempo para justificar as nossas falhas ao longo do tempo.