4 de março de 2011

"Lídia", conto de Maria Teresa Horta.

Primeiro foi uma espécie de impressão nos ombros e no pescoço. Uma ardência. Uma espécie de queimadura à flor da pele. Tentou ver-se no espelho do quarto: nua da cintura para cima, torcendo-se um pouco. Pareceu-lhe descobrir uma pequeníssima mancha vermelha em cada omoplata. Foi buscar o espelho redondo, cabo de prata trabalhada toda à volta, mas não conseguiu distinguir mais de perto.
Levou os dedos de novo às costas e tacteou um pouco. Mexeu de cá para lá a ver se descobria alguma grossura, mas não sentiu nada; absolutamente nada. Vestiu a blusa mais fina a abotoar à frente, praticamente translúcida e durante o resto do dia quase se esqueceu fresca e leve daquela impressão, daquela comichão.
Ao fim da tarde, quando já fazia escuro, o ardor voltou: docemente, num incômodo sem causa. Lídia nem sabia afinal o que sentia. E quando o marido chegou para jantar encontrou a casa às escuras e fria. Como que vazia na escuridão opaca dos quartos. Gritou: “Lídia!”, mas ela não lhe respondeu logo, entorpecida, entontecida, como se tivesse bebido um pouco.
Realmente Lídia sentia muita sede.
A mãe vomitara sangue quando ela era muito pequena. Vira-a levar os dedos à boca e eles saírem sujos de sangue enquanto tossia sem conseguir parar. Num desespero sem nome. Agarrara-lhe um dos braços abaixo do cotovelo e não o largara mais até a hemoptise acabar, pouco a pouco, de forma surda e equívoca.
O avô que era médico deitara a mãe num cadeirão baixo e largo na casa de jantar, dera-lhe um comprimido, um copo de água gelada. Pusera-lhe um saco de água quente aos pés e sentara-se numa cadeira em frente, hirto, à espera.
Estava muito branco e silencioso, como que a escutar aquele pequeno silvo que saia da boca da mãe, aquele borbulhar contínuo no peito da mãe enquanto tossia e levava um guardanapo de linho à boca e ele voltava sempre manchado de encarnado vivo. A mãe inclinava a cabeça para trás no espaldar forrado do cadeirão e de olhos fechados tentava dominar aquele pequeno repuxo de sangue que lhe subia do corpo a aflorar os lábios cerrados e lívidos; a perderem os contornos.
Lídia lembrou-se da mãe e teve medo, inexplicavelmente, ao lembrar aquelas marcas que julgara perceber nas costas quando olhara no espelho. Simétricas. Totalmente simétricas: em cada omoplata numa pequeníssima dor que começava agora a descer pelos braços, à flor da pele. Um formigueiro, era isso. Como um formigueiro na parte exterior dos braços que prendeu ao pescoço do marido inclinado sobre a cama ainda de casaco vestido tal como chegara da rua.
“Teus braços tão quentes!” – admirou-se ele, beijando-a na boca. Mas ela recuou porque lhe era insuportável o contacto do seu corpo. Nauseada. Percebeu então que asfixiava; as janelas fechadas da casa pareceram-lhe por momentos terem grades.

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Lídia recuou enrodilhando a colcha de renda da cama e disse baixo, como se estivesse a perder as forças: “Sufoco”. E não se levantou para fazer o jantar. Dormitou um pouco antes de o marido começar a despir-se para se deitar. Mas quando ele se estendeu a seu lado ela gritou. Um grito estrídulo e modelado.
A meio da madrugada, Lídia acordou, aterrada. “Foi um sonho”, pensou, mas logo percebeu que realmente não sentia os braços. Estavam tão leves que mal os sentia. Sentou-se na cama banhada por um suor morno que lhe corria pelas axilas, num cheiro a erva seca, a palha. Um suor que lhe colava os cabelos ao pescoço, lhe escorria pela cara, à volta da cintura. Nas virilhas também: pequenas bagas de suor a descerem pelas pernas que limpou devagar com a ponta dos dedos trêmulos. Levantou-se cambaleando e foi vomitar, curvada na retrete, um líquido amarelo, sujo, nauseabundo. Depois, quando lavou a boca à torneira do lavatório, olhou-se novamente no espelho e reparou nos olhos: afastados, de um azul lívido. Esgarçado, que não conhecia. Confusa, voltou a olhar e não se reconheceu no rosto no rosto que viu refletido no espelho: comprido e lívido, malares muito salientes, os olhos separados e sem cor.
Abriu a torneira toda, deixou correr a água e mergulhou nela a cara sem no entanto conseguir acalmar aquela febre. Aquele tremor, aquela chama a queimar-lhe o corpo todo. E ficou ali durante muito tempo, desorientada, sem conseguir entender o que se passava consigo. Sentindo-se desesperadamente só. Agachada a um canto da banheira.
“Tem graça – disse o marido quando se levantou de manhã -, cheira a rio, aqui.” –Ergueu um pouco a cabeça, olhando à roda. Lídia encolheu-se debaixo dos lençóis, os pulsos latejantes e novamente com aquela impressão esquisita e aguda nas costas, no pescoço, nos ombros. Encolheu-se mais, os joelhos unidos quase ao pé da boca, a sentir os braços dormentes. Ou melhor: ausentes.
“Acho-te com um ar estranho” – disse-lhe o marido parando para se despedir dela mesmo junto à cama. Lídia encolheu-se mais, muda. E sem a beijar, distraído, perguntou-lhe por que não ia ao médico da parte da tarde.
Lídia abanou a cabeça que sim e fechou os olhos depressa, na pressa de se afastar do seu olhar inquiridor, aterradoramente perto, como se de um momento para o outro a fosse agarrar. Então soube que não suportaria que ele a tocasse e fingiu que havia adormecido de novo. Mas logo que o ouviu sair, bater com a porta da rua, saltou num movimento único e ficou de pé no meio do quarto tremendo muito. Em desequilíbio. Entreabriu os braços naquele gesto largo que vinha fazendo por gosto há umas semanas e logo os seus pés tocaram por inteiro o chão, equilibrando-a.
Foi até ao espelho grande do guarda-vestidos e virando-se tentou novamente ver. As manchas lá estavam, maiores mesmo, dois pequenos círculos rosados e grossos. Tocou primeiro um, depois o outro e soube-lhe bem acariciar-se assim, aliviando um tudo nada aquele ardor. Aquela comichão. Aquela comichão dormente.
Lídia ficou ali praticamente o resto do dia: entre a cama e o espelho. Ora morrendo de sede ora de fome, ora asfixiando, janela escancarada por onde entrava todo o calor de um Verão sufocante que a banhava em suores entorpecedores que a febre fazia queimar sobre o corpo nu, enrodilhado no chão.
No primeiro dia ainda conseguiu beber algum leite, mas logo o vomitava, espumoso. Mais uma baba, um suco ácido que lhe abria gretas nos lábios ressequidos. Depois, a pouco e pouco ficou a beber só água que engolia em goles pequenos erguendo o pescoço que parecia cada vez mais esguio à medida que ela perdia peso e os ossos iam surgindo sob a pele de um tom levemente rosado; cada vez mais áspera. O marido fugia dela, espantado primeiro e depois repugnado. Teimando em chamar o m édico que quando veio diagnosticou uma depressão e lhe receitou uns comprimidos que ele foi buscar à farmácia e Lídia fingia tomar para logo os cuspir fora quando o via afastar-se.
Na segunda noite disse ao médico que não o queria a dormir a seu lado; mas ele também não desejava ficar, aterrado com o aspecto desfeito do rosto dela, agoniado com o suor que lhe banhava o corpo e foi dormir para a sala, dizendo alto, admirado: “esquisito, há um cheiro esquisito lá em casa”.
- Era um odor a prado; a erva seca e a água corrente por entre as pedras e os cardos, soube Lídia desde o princípio, quando secou os primeiros suores de febre no seu corpo nu, tremendo sobre a cama.
Na terceira noite tornou a acordar de madrugada, enrodilhada aos pés da cômoda de mogno preto que lhe dera a mãe. A cômoda da casa do avô, posta ao canto do quarto grande ao fundo do corredor por onde ela deslizava a medo quando era pequena, em bicos de pés, durante as horas da sesta e todos estavam deitados, nos meses de férias.
Na terceira noite voltou a acordar de madrugada debatendo-se com algo que ela julgou ser um pesadelo. A comichão nas costas aumentara e os braços voltaram a ficar dormentes e sem peso. Passou neles os dedos trêmulos e sentiu pela primeira vez que lhe estava a nascer uma espécie de penugem pelo lado de fora, até aos ombros; uma penugem áspera e doce ao mesmo tempo. Correu tropeçando a abrir a luz e ficou a olhar-se durante muito tempo, com o coração a bater descompassadamente, a olhar o corpo liso e macio que percorreu com as mãos. Ao de leve.
Na manhã seguinte o marido foi encontrá-la dormindo febrilmente, deitada perto da janela. A receber a brisa da manhã já acesa de calor àquela hora. Os cabelos espalhados na alcatifa, tão louros que faziam doer os olhos.
Ficou a olhar assustado a magreza do corpo despido a seus pés. A beleza do corpo despido a seus pés. Curvou-se devagar e aproximou a boca dos seios que beijou ao de leve sentindo aquele odor adocicado que se desprendia da mulher adormecida, lábios entreabertos e hálito queimado, ácido.
Curvou-se e tocou-lhe com a ponta dos dedos nos bicos erectos dos seios docemente em repouso. Mas ela acordou logo e fugiu-lhe dos braços naquele grito estrídulo e modelado que estava a tornar-se um hábito da sua parte.
“Eu não te faço mais – disse baixo levantando-se e olhando-a aterrado, querendo de qualquer forma acalmá-la. E afastou-se até a porta. Foi então que viu as fezes a um canto do quarto. Fugiu enojado. Ao passar na sala reparou que ela deixara de se preocupar de todo com a casa: o pó começava a tomar altura nos móveis, na alcatifa. Só os cinzeiros estavam estranhamente limpos. E apenas nesse instante se apercebeu que Lídia não voltara a fumar.
Deixara até de comer: o leite, o pão, os ovos que trazia todos os dias estavam na cozinha, intactos.
Antes de sair fez um café forte que bebeu agoniado com aquele cheiro doce que estava a tomar conta de tudo. Um cheiro a água estagnada. Ou antes , a animal. Em cima da mesa de mármore da cozinha estava a fruta: golpeada, decepada, caroço à mostra
Debicada? Ficou ali parado sem saber o que pensar. Desnorteado. Com uma repugnância que sem ele querer lhe começava a ser insuportável, a empurrá-lo dali para fora.
Ao fim da tarde voltaria a procurar o médico, decidiu. Lídia havia enlouquecido.
Sentada no parapeito da janela, joelhos subidos à boca, Lídia estremeceu quando o escutou bater a porta da rua depois de andar de cá para lá entre a cozinha e a sala. Ouviu-o ainda a falar ao telefone para o médico a combinar um encontro e adivinhou o perigo.
Lídia adivinhou o perigo.
Naquele dia sentia-se melhor – a febre não voltara, mas a noite fora atormentada e terrível. Só conseguira adormecer já de manhã, horas e horas tentando acalmar aquela comichão nas costas cada vez maior.
No espelho redondo da casa de banho viu que as manchas nas omoplatas haviam crescido muito: eram agora dois círculos largos, imensos, de um rosa intenso, brilhante. Rugosos.
Fascinada voltou a acariciar-se e a acariciar-se, braços cruzados sobre os seios a embrulharem o tronco, mãos tacteando as omoplatas, tentando apagar aquela comichão macia agora quase boa.
Baixou-se sobre o lavatório para beber água da torneira.Deixara de se servir dos copos: inclinava o tronco, recebia a água na boca e em seguida engolia-a , cabeça erguida, o pescoço ondeando ternamente.
Já havia nascido a manhã quando se deitou sob a janela escancarada. A frescura da madrugada a descer-lhe no corpo a secar-lhe da pele os últimos suores da febre que baixara. A sossegar-lhe o cansaço. E o torpor cresceu adormecendo-a finalmente. Fazendo-a esquecer tudo à volta. O próprio corpo.
O medo que ainda aparecia de vez em quando perfurando aquele enevoado, aquele universo difuso, brumoso, onde passara a habitar.
Foi a última vez que dormiu deitada.
“Ela também deixou de falar” – explicou o marido ao médico quando o procurou no consultório ao fim da tarde. E contou-lhe dos dejetos, dos objetos derrubados, da fruta decepada na mesa da cozinha, dos ruídos estranhos e agudos que ouvia vindos do quarto. Do cheiro de animal que enchia a casa.
“Ela também deixou de se vestir” – lembrou-se.
Lídia sabia que tinha de se apressar, acabar aquele percurso de dor e de medo; cada dia menores. Perdidos à medida que mergulhava mais fundo na penumbra, dia após dia. Ficava horas alisando o corpo com a ponta dos dedos, passando a língua nos braços, pelos joelhos, pelos pulsos.
No princípio do mês viera-lhe a menstruação: deixara-a correr livremente pelas coxas, pelas pernas, naquele encarnado vivo de rubi. Debaixo do chuveiro masturbara-se até se sentir exausta. A seus pés a água era nacarada, rosa e sanguínea. Depois frente ao espelho do quarto voltara a acariciar-se, lentamente, entreabrindo os lábios da vagina e vendo o pequeno clitóris tumefacto, erecto e húmido.
Sabia que lhe restavam poucos dias, atenta nos curtos momentos de lucidez que ainda surgiam, aos ruídos e às modificações à sua volta. Tudo o resto lhe era indiferente. Ou melhor, o resto do seu tempo perdia-se informe e feroz. Lídia não se lembrava de alguma vez ter sido voraz. De ter sentido algum dia aquela voracidade.
Corria a defender-se atrás da cama quando o marido entreabria a porta e espreitava para dentro da penumbra onde se abrigava. Naquele fim de tarde o marido trouxe com ele o médico. Tentaram agarrá-la. Mas ela guinchou, mordendo. Arranhando; unhas na direcção dos olhos dos dois, que logo recuaram atemorizados. Aterrados.
“Tem de ser internada” – disse o médico.
Nessa noite Lídia sonhou com as árvores. Pela primeira vez sonhou com as árvores e com o imenso azul do céu, à sua frente. Sentia o ar fresco abrindo-se para a receber: um vento tépido e envolvente passando no seu corpo ágil, em movimento.
Pela primeira vez nessa noite Lídia sonhou com as árvores. Tomou elas o cheiro e as sementes do chão, por entre as ervas macias.
Pela primeira vez nessa noite Lídia sonhou com as árvores, matou a sede no ribeiro e a fome na mata deixando correr na garganta o suco dos frutos e das flores.
Acordou cedo, desceu do espaldar da cama onde se aninhara e foi até a janela escancarada. Olhou para fora, atenta. Mas apenas viu os prédios enormes, à volta, mesmo até lá longe. E por entre os intervalos, lá no cimo, um pouco de céu onde passavam as naves, silenciosas.
Encostou a cabeça aos vidros. Os cabelos caídos pelas costas, tão louros que faziam doer os olhos. Nessa noite Lídia sonhou com rosas: carnudas e vermelhas, sanguíneas. Rosas-chá, pálidas, de pétalas quase transparentes. Rosas cor-de-rosa, mais pequenas, que ela lembrava da quinta do avô, perto do muro que na parte de trás da casa dava para o rio que corria ali perto.
Nessa noite Lídia recuperou a memória. Em movimentos muito leves andou pelo escuro da casa sem tropeçar nos móveis, a tocar, a tactear os objectos, a louça, os contornos dos móveis.
Recuperou a memória. Entendeu que tinha de se apressar e foi encostar-se à janela esperando pela madrugada, que ela aparecesse por entre os prédios enormes à sua frente. E pensou naquela fotografia onde estava no meio das hortências azuis, sorrindo para o pai e para a mãe à sua frente. Porque nessa noite Lídia sonhara com a ilha onde vivera quando era pequena, o mar sombrio todo à roda, a terra a tremer debaixo dos pés, uma, três vezes por dia... E as hortências num colorido intenso. Como os olhos da mãe.
Lídia ficou ali muito tempo. Ouviu o marido levantar-se lá dentro. Percebeu depois que a espreitava entreabrindo a porta. Escutou em seguida o seu telefonema para o médico.
Quando ele saiu foi até à sala, à cozinha, ao escritório. Depois regressou ao quarto e ficou à espera.
Levantou-se um vento quente por volta do meio-dia: mais um bafo afinal pesado e tenso, que quase nem fazia inquietar os ramos das árvores. As cortinas do quarto de Lídia moveram-se um pouco mas logo se aquietaram. Ela estremeceu, sentiu uma ligeira tontura, estremeceu mas não saiu de onde estava, fitando-se e ao quarto através do espelho grande do guarda-vestidos pesado, a um canto. Alisou os ombros e as costas com as unhas durante algum tempo, os braços cruzados à altura do peito, as mãos atiradas para trás, os dedos longos esticados, as unhas compridas a adoçarem no gesto.
Parecia adormecida se não fosse o movimento das mãos quebradas pelos pulsos delgados, de criança.
Agora o seu tempo era estar ali à espera, vigilante a todos os ruídos. Ainda sabendo como era chorar mas já não conseguindo sequer imaginar-se chorando. Porque Lídia perdera para sempre a faculdade de chorar. Mesmo assim o soluço formou-se-lhe no peito à altura do coração. Mas os olhos continuaram secos, sem cor nenhuma, com aquele cintilar agudo do vidro que de longe se poderia confundir com lágrimas.
Lídia recuperara a memória mas não o choro. Não o choro.
Agachou-se, mãos e pés no chão, quando ouviu o marido meter a chave à porta da rua. Recuando para perto da janela aberta. Os olhos fitos na maçaneta de porcelana branca com pequenas flores pintadas a cor-de-rosa e verde.
Ele hesitou um pouco antes de deixar entrar os enfermeiros. Na sala percebeu que ela havia ali estado pelos objectos derrubados, pelo vidro partido da fotografia grande colorida à pena: as hortências tão azuis com os olhos dela, o pequeno casaco de malha encarnado subido na cintura, os joelhos magros e um pouco esfolados de brincar sozinha no pátio, as tranças e o risco ao meio no cabelo ainda cor de mel.
E o cheiro. Ele soube que Lídia havia ali estado pelo cheiro: a terra molhada, a palha, o riacho. A erva seca pelo calor. A animal, também.
Levou devagar a mão à maçaneta da porta do quarto e rodou-a.
Lídia viu a maçaneta rodar. Num golpe de rins saltou para o parapeito da janela a olhar sempre para dentro, a espreitar para dentro da penumbra do quarto. Acocorada. Os cabelos tombados para a frente, soltos, a baterem abaixo dos ombros.
Viu a maçaneta rodar e a porta abrir-se tão lentamente que ao princípio até poderia parecer ter continuado fechada.
Primeiro reparou nele e em seguida nos dois homens, bata branca abotoada atrás. Os três parados à entrada do quarto a olharem para ela, sem um gesto. Nem uma palavra. Apenas ali parados, excessivamente imóveis para serem reais. Só passado algum tempo o marido deu o primeiro passo em sua direcção.
Lídia deixou que pouco a pouco ele se aproximasse mais: cauteloso. A medo. Pés silenciosos postos atrás um do outro. Passos medidos. Olhar astuto.
Como quem caça.
E na altura em que ele ia começar a formar o salto para a agarrar, lançou-se da janela.

Abriu as asas. Cintilantes ao sol da tarde.

E voou.
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Maria Teresa Horta. Lídia: In: VVAA, Contos. Ed. Caminho, 1985.

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