23 de maio de 2011

Miguel Torga: “Vicente”

Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava:- a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.
Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.
A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados. Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:
- Noé, onde está o meu servo Vicente?  
Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.
Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.
Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.
- Deve andar por aí...Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...
Nada.
- Vicente!...Ninguém o viu? Procurem-no!
Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.
- Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?
Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.
- Vicente fugiu...
- Fugiu? Fugiu como?
- Fugiu...Voou...
Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.
Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.
Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.
- Noé, onde está o meu servo Vicente?
Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.
- Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...
- Noé!...Noé!...
E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.

Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.

Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?

Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?

Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.

Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.

Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte... Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.

Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra...Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?

Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.

Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada. Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.

Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino. Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu!" E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.

Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.

Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência. Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte. Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre. Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.”


Conto de Miguel Torga. Os bichos, 1987.


Comentário do conto "Vicente" - M. Torga.

Para quem conhece a biografia de Torga, não é difícil fazer uma analogia entre Vicente e o autor, chegando à conclusão que o Corvo funciona como seu alter-ego, ou seja: esse ser rebelde, desobediente, ousado e corajoso, que ousa desafiar os deuses e cuja voz se ergue altiva, obstinada e rebelde em defesa da sua liberdade. Voz que se assume como a voz dos demais oprimidos que não possuem a coragem e a ousadia suficientes para se rebelarem contra seus opressores.
No conto, Torga intertextualizou o episódio bíblico do dilúvio, adaptando-o à mensagem que desejava comunicar. Assim, em lugar da pomba, fez do corvo o protagonista de sua história. Este, após quarenta dias preso na arca de Noé, estava extenuado, inquieto, tenso e tomado de indignação com Deus, que ordenara aquela prisão e punia os animais inocentes pelos pecados dos homens: «Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens?» –, Vicente abriu as asas e partiu. Todos os outros animais ficaram pasmados com a ousadia do corvo. «O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação».
Considerando o sentido alegórico deste conto, fica evidente a mensagem do seu autor, segundo a qual o homem não deve sentir medo quando batalha por uma causa ou por um ideal que acha pertinentes e legítimos. Na polaridade submissão/rebeldia, o corvo Vicente funciona como uma representação do homem rebelde, destemido, que não aceita a coação e a intimidação por parte de nenhum déspota que se julgue com o direito de subjugá-lo, daí defender até as últimas conseqüências seu direito de ser livre.
O conto, como não poderia deixar de ser, termina com a vitória de Vicente, o corvo rebelde que no dilúvio universal não teve medo e ousou abandonar a arca de Noé, tornando-se autônomo relativamente ao próprio Criador. Se este lhe dera o direito de nascer livre e de viver em liberdade, não tinha o direito de penalizá-lo por sua opção de evadir-se:
“Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.
Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre.
Que para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu”. (Bichos, 1987 p. 133).

Torga viveu e sofreu durante os anos de ditadura e repressão em Portugal. Todavia, não deixou de ser um defensor da liberdade individual. Sua rebeldia, sua obstinação em seguir seus próprios valores ideológicos, sua intrepidez em relação à opressão por parte dos poderosos, estão evidentes em grande parte de sua obra. O desfecho da luta entre Vicente e o “Criador”, com a vitória do Corvo, reforça a idéia de que é válida toda luta pela liberdade, desde que seja sustentada por uma “vontade inabalável de ser livre”. 
Zenóbia Collares Moreira.
 

2 de maio de 2011

Maria Judite de Carvalho- "A Noiva Inconsolável".


Ambas a tinham beijado, abraçado, lamentado sinceramente, com palavras trêmulas e lacrimejantes, muito sentidas: “Coitada, mas que pouca sorte a tua!” – “Oh filha, eu, quando soube, fiquei varada, nem queria acreditar...” – “Mas como é possível, como é possível?” Queriam saber pormenores. Como fora, afinal de contas? Que acontecera? O jornal explicava tão mal, a notícia era tão pouco clara... E Joana ia-se repetindo, incessantemente, no mesmo metal de voz cansado e igual. Ele telefonara-lhe na antevéspera, dissera-lhe que no dia seguinte – ontem- tencionava ir com amigos à praia, ao fim da tarde, quando saísse do escritório. “Vamos num pulo a Carcavelos dar um mergulho.” Ela parece que adivinhava, um pressentimento, não é? Tinha feito tudo para o dissuadir. Mas ele teimava: que estava combinado, e isto e aquilo. Tinha ido. Não sabia mais nada. Ninguém sabia mais nada.
“Era a morte a chamá-lo”
“Era...”
“O nosso destino está marcado, filha. Digam o que disserem. Se ele não tivesse ido nadar para Carcavelos, acontecia-lhe qualquer outra coisa. Ficava atropelado, por exemplo. O dia era ontem.”
“O dia era ontem. O nosso quando será?”
Houve um breve silêncio cheio de perguntas. A Inês, uma morena muito pintada, disse, levantando-se, com um suspiro:
“Tenho que ir indo. Não quis deixar de te dar um abraço, nas agora tenho que ir indo. O dentista marcou-me hora às cinco e meia. Já não tenho muito tempo”.
A outra, que estava sentada perto da janela, perguntou se o dentista ficava na Baixa. Então ia comprar botões. “Tu desculpas, sim? Mas é que me fazem tanta falta!”
Houve novamente beijos muito estalados e pedidos, melhor, exortações à resignação. Agora já não havia nada a fazer. Era preciso ter coragem, encarar as coisas de frente. A Inês ia ainda dizer que as lágrimas não serviam de nada, mas deteve-se a tempo quando verificou que Joana não chorava, olhava-as de frente com o rosto seco e a expressão de todos os dias. De todos os dias? Bem, talvez não fosse exatamente assim. A expressão dela não era a de todos os dias, era mesmo uma expressão nova, diferente de todas as suas expressões. A Guida, porém, e a Inês não compreenderam o seu significado. Eram raparigas simples, que mão viam muito para além das coisas.
A porta fechou-se devagar e as duas começaram a descer a escada. Um sol de fim de tarde, amarelado e sujo, atravessava com dificuldade a clarabóia.
“Coitada”, disse Guida abrindo a mala para se ver ao espelho, “não se pode dizer que tenha tidomuita sorte. Tanto se ralou para arranjar um homem e ele morre-lhe assim do pé para a mão. E logo afogado, que horror”!
Sempre tive um medo horrível de morrer afogada”, declarou Inês. “Bem, eu sei nadar... mas a verdade é que ele também sabia. Não sei porquê, mas o fundo do mar... Aqueles bichos horríveis, moréias, não é? Que parecem cobras. No aquário se Algés havia duas moréias, de olhos muito vivos, a olharem fixos para mim. Tinha pesadelos sempre que lá ia. Quando era miúda, claro. Depois nunca mais lá voltei. Já devem ter morrido. Quanto tempo durará uma moréia?”
A outra riu.
“Sei lá! Em todo o caso no mar de Carcavelos não deve haver moréias. Que... bem, tens razão...A gente não sabe onde ele está, por onde anda. Não apareceu... Ainda não deu à costa. Quandio isso acontecer, deve estar... Meu Deus, não vou comer peixe durante muito tempo.”
Teve um arrepio. “Coitada da Joana, nunca mais arranja outro. Com uma cara daquelas... Ouve cá, tu achas que ele casava mesmo?
“Levava-lhe jeito. Até tinham comprado uma mobília de quarto... Já vês...”
“Sim, claro, mas é esquisito, não achas?”
“É. Há muita coisa esquisita por esse mundo. Olha, eu, por exemplo, não tenho hora marcada no dentista. O Zé deve estar à minha espera na paragem do autocarro.”
A outra foi atacada de riso.
“Eu também não vou à Baixa comprar botões. Vou à segunda matinée do Tivoli. E tenho que me meter num táxi, senão chego tarde.”
Separaram-se alegremente. No fundo, eram excelentes raparigas. Não tinham querido falar em namoros e cinemas, porque tinham o sentido do apropósito.
***
Joana estava só. As amigas acabavam de sair e os pais e o irmão ainda não tinham chegado a casa. A mãe não se demorava com certeza, fora comprar-lhe uma blusa e meias pretas. Nem um beijo lhe dera nesse dia, nem uma plavra de ternura. Não agredia, isso não, sempre era uma vantagem que tinha sobre os outros, Ficava-se hirta e quieta, como que fechada por dentro no seu restrito mundo hermético. Era uma boa esposa, uma boa mãe; As noites que tinha perdido, as noites que continuava a perder sempre que alguém estava doente! Não lhe podiam pedir mais , não lhe pediam mais. O irmão, esseentrava e saia, nunca parava em casa. Rapazes, não é verdade? Agora é que era aproveitar... Quanto ao pai, chamava a todas as coisas que não fossem inteiramente transparentes, àquelas que lhe parecessem ligeiramente turvas, complicações de gente histérica. E falava sempre com ar definitivo de quem tudo pode julgar porque tudo sabe.
Filha deles? Irmã do irmão? Quando pensava nisso parecia-lhe ter nascido de si própria, sem laços que a unissem a ninguém. E, no entanto, como esses laços lhe faziam falta! Uma semente vinda sabe-se lá donde e que o vento por acaso ali tivesse largado. Sentia-se longe da família, das suas pequens ambições, das suas invejas mesquinhas. “Sou o homem de confiança do Rebelo”, dizia o irmão. “Vou fazer uma limpeza. O Rebelo, coitado, que é bom homem nas não deve nada à inteligência, tem sido ignobilmente enganado por aquela corja. Agora vai entrar tudo nos eixos, olá se vai. Eles conhecem-me, sabem que corto a direito”. O pai falava do cargo de sub-chefe que fora dado ao Silva, um incapaz, um analfabeto. “Era um lugar para mim, todos dizem que era um lugar para mim.” O irmão tinha um sorriso superior, que a mãe aplaudia em silêncio: “O pai é um ingênuo. Teve tudo na mão, mas não soube aproveitar. Agora é tarde, claro. Por isso eu...”
No foro íntimo, Joana tratava-os pelos nomes próprios, respondia-lhe com o seu silêncio, com o livro que lia durante as refeições para não ser obrigada a ouvi-los, para se recusar a ouvi-los. Não os detestava, nem isso, simplesmente eles não a interessavam. Sentia-se longe, sozinha no mundo, sozinha em parte nenhuma. Era tudo.
Ela e o seu pequeno rosto ingrato, de coelho, em seus óculos espessos, de muitas dioptrias, a silhuetas pesada e sem graça. Outras tantas grades a isolarem-na do mundo exterior, a taparem a entrada a quem viesse. Mas ninguém vinha. E ela tão só, coitada. Via-se no espelho, estudava o novo penteado à Farah Diba, experimentava um creme de que se diziam maravilhas, no último número da Elle. Mas a carinha de coelho era mais forte do que tudo. Estava sempre em primeiro plano.
Depois ele um dia aparecera. Bonito rapaz, simpático em todo o caso. Nunca se lhe pusera o problema de saber se o amava verdadeiramente. Mas havia aquele precisar dos olhos dele a olharem-na, de algumas palavras que nunca ouvira antes e ele lhe dizia, da promessa das suas mãos.
A mãe, quando soubera do namoro, sentira-se preocupada. Dir-se-ia que procurava em volta, sem a achar, a razão – porque alguma devia existir – para aquele homem, o primeiro, se interessar por Joana. O pai limitara-se a dizer, sem levantar os olhos do jornal, que já não era sem tempo, e tinha perguntado logo a seguir, na mesma emissão de voz, se sabia quando ele ganhava. Quanto ao irmão, olhava-a com um espanto quase insultuoso e dera-lhe de conselho que o agarrasse bem e fizesse por casar depressa.
De princípio ele queria casar já e tinham mesmo comprado aquela mobília com as economias de ambos. Depois começara a falar numa situação muito vantajosa que lhe tinham oferecido na África. Por fim deixara de se referir a ambas as coisas. Era raro aparecer e telefonava-lhe mais à pressa, tinha sempre trabalho urgente a fazer, “tu desculpas-me. Sim? Amanhã te explico”. Não explicava, porque nunca aparecia aamanhã, só dias depois e então tinha-me esquecido, era natural, com tanto em que pensar. E até parecia esquisito ela ir-lhe falar de coisas já tão passadas.
Mas, a pouco e pouco, as grades que havia meses tinham caído apareciam de novo à sua volta. Via outra vez coisas perdidas e reencontradas. A sua carinha de coelho, por exemplo, trinta anos, o seu corpo desengraçado, ouvia a sua foz a fazer a si própria perguntas a que se recusava a dar resposta. Tinha uma grande vontade de chorar e todas as manhãs pensava, aterrorizada, se seria nesse dia.
Na antevéspera ele telefonara-lhe a dizer aquilo. Joana pedira-lhe que não fosse. Porque não a vinha ver? Tinham tanto em que falar! Havia já quase uma semana que não aparecia. “Uma semana? Pode lá ser! Estás a brincar...” Não estava. Uma semana, “Meu Deus, como o tempo passa!” exclamava ele com convicção. Meu Deus, como o tempo é longo, pensava ela. Como o tempo custa a passar!
Depois, nessa manhã, lera a notícia no jornal. Vinha o retrato dele, um retrato antigo que ela não conhecia. Mas havia tantas coisas que ela não conhecia e tantas pessoas... Pessoas a falar e ela a ouvi-las e a responder, a ter opiniões. Quais? Que teria dito? O seu atual pensamento flutuava levemente numa atmosfera mansa, batia ao de leve as asas, aflorava as coisas. Toda a angústia desaparecera. Já não receava nada, já não ia acordar todas as manhãs a pensar que talvez tudo fosse terminar antes da noite. Sentia essa calma no rosto que não via, nas mãos quietas, na voz que lhe saía direta, quase rígida. A serenidade que ele lhe legara! Apetecia-lhe sorrir mesmo sem estar alegre, sorrir precisamente porque estava triste. Sorrir à mãe quando ela entrasse com os trapos pretos que nunca mais havia de despir, sorrir ao pai, ao irmão, às amigas que tinham acabado de descer a escada, sorrir a toda a gente. Era de súbito outra pessoa. A noiva inconsolável do homem que morrera.

Maria Judite de Carvalhio. As palavras poupadas, Ed. Seara Nova, 3ª. Edição, p. 120-127.

Comentário do conto a seguir.
 

Comentário do conto "A Noiva Inconsolável".

                                                                                                                   
Ao longo da sua obra Maria Judite denuncia a ausência de sentido, de significação do mundo, desenhado por ela, nunca como uma estância de felicidade e harmonia, mas sim como um lugar inóspito, pesado, no qual cada pessoa carrega o fardo da solidão, sempre subjugada às leis tirânicas estabelecidas pela engrenagem social, como se fossem uma prisão. Aquele que ousa recusar os valores sociais estabelecidos terá que arcar com as conseqüências dolorosas de ser ignorado ou aniquilado pelo grupo social.
É sob este ponto de vista que Maria Judite de Carvalho questiona, em  alguns valores da sociedade burguesa dos anos sessenta do século XX: o casamento, a família, os costumes sociais e a condição feminina.
Joana, a personagem central da narrativa já passou dos trinta anos, é uma moça solteira que, segundo os costumes da época, já passou da idade de se casar. Ela sofre a angústia de sua situação de solteirona e, como tal, sem um lugar definido no grupo social, condizente com as expectativas de todos em relação a sua pessoa.
Para as mulheres da classe média que viveram até a década de sessenta do século XX, como Joana, a opção que lhe era dada reduzia-se ao casamento, considerado o único destino digno para a mulher, no qual exerceria seu papel de esposa, mãe e dona de casa, realizando o que a família esperava da mulher solteira. O casamento significava segurança e a chance de ter uma posição definida e prestigiada. Assim sendo, ficar solteira era a máxima infelicidade para as mulheres. A sociedade era cruel com as solteironas a quem dispensava uma espécie de disfarçada marginalização, quando não eram o alvo de zombarias ou dos olhares de piedade.. Seu destino era a solidão.

Joana, personagem deste conto, é uma mulher feia, que já passou da idade de arranjar marido e tem poucas chances de encontrar um noivo. Ela sabe não tem beleza nem atrativos e decide levar uma vida reclusa na casa dos pais que a sustentam. O pai é arrogante e autoritário, a mãe é submissa e cumpre o seu papel de esposa e dona de casa à risca. O irmão, diferentemente de Joana, tem direito a todos os privilégios que a sociedade permite aos filhos do sexo masculino, cuja educação especial assegurar-lhe exibir um ar superioridade em relação às mulheres.
Joana, na estreiteza de seu pequeno mundo, sente-se distante de cada um deles, de suas pequenas ambições e invejas mesquinhas, emparedada na sua solidão, relegada a segundo plano no seio da família por sua condição de moça solteira, já não muito jovem, a quem nenhum papel, nenhum rótulo coubera até então:
"Filha deles? Irmã do irmão? Quando pensava nisso parecia-lhe ter nascido de si própria, sem laços que a unissem a ninguém (...)
Não os detestava, nem isso, simplesmente eles não a interessavam. Sentia-se longe, sozinha no mundo, sozinha em parte alguma".

O surgimento de um pretendente à mão de Joana vem abalar a mesmice, a aparente tranqüilidade desse lar burguês. Abre-se para Joana a possibilidade de conquistar um lugar definido, de tornar-se, ela também, “boa esposa, boa mãe”, assumindo, assim, o papel que lhe cabe representar, ocupando o seu “lugar marcado”. Tanto que ela nunca se pusera o problema de saber se o amava verdadeiramente. Daí o terror de perdê-lo por um rompimento e recair na situação anterior, na indefinição e no vazio:


"Mas a pouco e pouco, as grades que havia meses tinham caído apareciam de novo à sua volta. Via outra vez coisas perdidas e reencontradas. A sua carinha de coelho, por exemplo, já com trinta anos, o seu corpo desengraçado, ouvia a sua voz fazer a si própria perguntas a que se recusava a dar resposta. Tinha uma grande vontade de chorar, e todas as manhãs pensava, aterrorizada, se seria neste dia".


A morte súbita do noivo, vítima de afogamento, proporciona à Joana uma súbita revelação de que estava no limiar de sua sonhada libertação. Após ler a notícia da morte do noivo no jornal, Joana foi invadida por uma profunda serenidade:


"Toda a angústia desapareceu. Já não receava nada, já não ia acordar todas as manhãs a pensar que talvez tudo fosse terminar antes da noite. Sentia essa calma no rosto que não via, nas mãos quietas, na voz que lhe saía direta, quase rígida. A serenidade que ele lhe negara! Apetecia-lhe sorrir mesmo sem estar alegre, sorrir precisamente porque estava triste. Sorrir à mãe quando ela entrasse com os trapos pretos que nunca mais havia de despir. Sorrir ao pai, ao irmão, às amigas que tinham acabado de descer a escada, sorrir a toda gente. Era de súbito outra pessoa. A noiva inconsolável do homem que morrera".


Após essa experiência reveladora, Joana começa a experienciar uma profunda transformação interior que a torna uma pessoa segura, determinada, firme, confiante e serena: nada mais lhe resta da Joana anterior, insegura, arredia, entregue à solidão. Depois da morte do noivo ela é outra pessoa, completamente diferente da que fora. Ela passa a fazer parte do mesmo mundo de sua mãe, do seu pai, do seu irmão e das suas amigas. Ela, enfim encontrou o seu lugar marcado: o lugar de Noiva Inconsolável do homem que morrera.

A morte do noivo traz um novo sentido à vida de Joana, na medida em que lhe ensejou uma radical inversão de valores que a leva a assumir a máscara da “noiva inconsolável”, depois da morte do noivo. Paradoxalmente, a morte do noivo conduziu Joana à tranqüilidade, ao equilíbrio e à recriação da realidade, que tornou possível a felicidade

O ponto forte da crítica de Maria Judite de Carvalho é alicerçado pela IRONIA, usada com muita habilidade pela autora como questionamento acerca de um sistema de valores da época (anos 60), caracterizado pela vulgaridade e falsidade das pessoas. Através de Joana, a autora vai apontando a falsidade e a hipocrisia prevalescentes nas relações sociais com a família, com as amigas, com o noivo.
A ironia se estende ao próprio título do conto, pois apenas fingia que sentira a morte do noivo, na verdade a noiva não estava inconsolável. Ela se faz de inconsolável, mas o rótulo é pura encenação, é a máscara dolorosa para dar foro de autenticidade à saudade fingida do noivo e para um amor que não havia.
Joana substituiu o vestido branco de noiva pelo traje preto de viúva que vestiria até o fim da vida, voluntariamente, incorporando a personagem de si mesma que criou para representar no palco da vida social o romântico papel que lhe daria enorme visibilidade, prestigio e respeito.