1 de outubro de 2011

Guimarães Rosa: Darandina.


A manhã era clara. O narrador, já em horário de serviço, estava junto ao portão do prédio de uma instituição destinada a tratar de doenças mentais, onde trabalhava, provavelmente como médico. De repente, alguém gritou e o narrador, embora de relance, percebeu que um senhor distinto que passava por ali furtou a caneta-tinteiro da lapela do paletó de outro transeunte e saiu correndo, perseguido. Apesar de vestido socialmente, não tirou os sapatos para se refugiar no alto de uma palmeira da praça, na qual havia subido com rapidez.
Sem demora, formou-se, em volta da árvore, uma pequena multidão de curiosos que faziam comentários ou ameças. O narrador julgou tratar-se de um camelô importuno que queria vender canetas. Adalgiso, colega de serviço – a dupla estava de plantão – puxou-o pelo braço e lá se foram os dois, passando no meio do ajuntamento formado ao pé da árvore. As pessoas supunham que o tal homem fosse um doido que fugira e, por isso, facilitavam a passagem dos dois plantonistas, identificados assim pelo avental que usavam. Adalgiso comentou baixo que o fugitivo não devia ser um louco, pois tinha aparência de normal.
Lá de cima o homem discursava. Afirmava que não era demente, mas percebia que estava quase sendo tomado pela insanidade ao ver a humanidade enlouquecida. Por isso, resolveu internar-se num hospício, no qual estaria protegido quando a humanidade piorasse.
O narrador viu no tal homem a confirmação da teoria do professor Dartanhã: 40% das pessoas são loucos reconhecidos e grande parte das demais poderia receber o mesmo diagnóstico.
Adalgiso cochichou que o colega deles, Sandoval, reconheceu o homem da palmeira: era o Secretário das Finanças Públicas. Ia chamar as autoridades para decidirem o que fazer.
Enquanto não aparecia ninguém que tomasse providências, o tal falso louco se equilibrava muito bem e falava como um doido de verdade, que ele não era gente, que ele era uma ilusão.

 (LEIA MAIS, clicando na frase abaixo)

Comentário do conto Darandina de Guimarães Rosa

Darandina é um conto que transita do anedótico ao satírico. Seu título é mais um dentre os muitos neologismos criados pelo autor, no caso desse conto para significar atrapalhação, confusão. Inserido na coletânea de contos intitulada Primeiras estórias, a narrativa tematiza a loucura e questiona os limites entre esta e a normalidade. 
A ação desenvolve-se numa praça vizinha do hospício de uma pequena cidade não especificada, na qual um acontecimento inusitado revoluciona o cotidiano sossego do lugarejo, ou seja: um sujeito trajado com apuro e de ótima aparência rouba uma caneta, é surpreendido e, para fugir dos seus perseguidores, protagoniza um episódio espantoso que deixa perplexas as pessoas reunidas na praça: consegue subir, sem nenhuma dificuldade, uma alta palmeira e se acomoda no seu topo. 
Embaixo, os moradores da região acompanham atentamente os improfícuos esforços das autoridades, para convencerem o homem a voltar para o chão. Obstinadamente, ele resiste aos apelos, proferindo frases desconexas, enquanto despe toda a roupa, demonstrando extraordinário equilíbrio físico. 
Diante da situação vexatória em que se colocara o insano, um médico resolve subir pela escada dos bombeiros para tentar um dialogo. Todavia, logo percebe que o desvairado recuperara a lucidez e que, cheio de vergonha e constrangimento, pedia para ser socorrido. 
A multidão, sentindo-se ludibriada e privada do espetáculo, não aceita essa súbita sanidade e se dispõe a linchá-lo. Sentindo-se em risco, o ex-louco tem (ou finge) outro ataque de insanidade, gritando palavras de louvor à liberdade, motivo suficiente para a multidão viajar no delírio, aplaudi-lo e levá-lo nos ombros, como um herói. 
Essa insólita história passa a ser o ponto de partida para discussões, discursos, comentários em torno da loucura. O leitor se vê, assim, diante de um protagonista doente mental que profere frases desconexas, supostamente filosóficas e proféticas, capazes de levar a multidão de ouvintes ao mais exacerbado delírio. O que parecia um acontecimento trágico resvala para o plano do anedótico, da comicidade. Com efeito, instaura-se o tragicômico espetáculo da loucura coletiva, para o qual inexistem elementos lógicos que o possam explicar. 
Vale ainda ressaltar que, enquanto o homem faz espetáculo de sua loucura no alto da palmeira, as pessoas que estavam no chão assumiam comportamentos estranhos e avizinhados da insanidade, ou seja: a absurda e vazia discussão dos especialistas acerca da determinação da loucura do sujeito da árvore, quando o mais importante seria encontrarem uma solução para o impasse. Também não é menos insano o espetáculo de uma cidade inteira parada para seguir todas as etapas do desvario do desconhecido surtado. Todo esse conjunto de fatos justifica que se questione a tênue fronteira entre a normalidade e a loucura.
______________________________________
Zenóbia Collares Moreira
Imagem banner: Andrea Mancine.  
Barrinhas gifs