3 de dezembro de 2013

Penélope, conto de Dalton Trevisan

Na rua de casas iguais morava, há muitos anos, um casal de velhos. Ela o esperava, costurando na cadeira de embalo da varanda e, quando ele vinha pela rua, com um pacote no braço, descia, de chinelos, os dois degraus da varanda e lhe sorria, com o portão aberto. Cruzavam o pequeno jardim e, apenas na porta, por causa dos vizinhos, mas ainda antes de entrar, ela lhe erguia a cabeça, sem nenhum fio branco, e ele a beijava na testa. Estavam sempre juntos, lidando no seu quintal, ele com as couves, ela com sua coleção de cactos. Quando deixavam aberta a porta da cozinha, os vizinhos podiam ver que ele enxugava a louça para a mulher. E, aos sábados, saíam para o seu passeio diante das vitrinas, ela, gorda, ainda bonita, de olhos azuis e ele, magro, baixo, de preto. Nas noites de verão, ela usava vestidos brancos, de pernas nuas, ele não, sempre de preto. Havia um mistério na vida deles, que nenhum vizinho conhecia. Sabia-se vagamente que os filhos tinham morrido num desastre, há muitos anos. O casal de velhos abandonou tudo, casa, túmulos, bichos e se mudara para aquela cidade, naquela rua. Eram os dois, sem cão, gato, passarinho, nem mesmo galinhas. Tinham medo de se afeiçoar a qualquer coisa. Algumas vezes, na ausência do marido, ela trazia ossos para os cães vagabundos que cheiravam o portão. Quando engordavam uma galinha, a mulher se enternecia por ela e não tinha coragem de matá-la. Então, o velho desmanchou o galinheiro e, no seu lugar, plantou uns pés de couve. Arrancou a única roseira que crescia num canto do jardim; nem a uma rosa se atreviam a dar os seus restos de amor. 
Afora a viagem, que faziam uma vez por ano para visitar o túmulo dos filhos, não saíam de casa, o velho fumando seu cachimbo, a velha trançando as agulhas de tricô, a não ser no seu clássico passeio dos sábados. E foi num sábado que, ao abrir a porta, eles acharam a seus pés, uma carta. Era estranho, porque ninguém lhes escrevia, os dois sozinhos no mundo, e confabularam antes de se decidir a abri-la. Era um envelope azul, sem qualquer endereço. A mulher propôs rasgá-lo, sem ler. Já tinham sofrido demais. Ele respondeu que ninguém podia mais fazer-lhes mal. Não queimou a carta, não se apressou de abri-la, deixou-a sobre a mesa. Sentaram-se um diante do outro, sob o abajur azul da sala, ela com seu tricô, ele com seu jornal. As vezes, ela curvava a cabeça, mordendo uma agulha na boca e com a outra contando os pontos. Quando chegava ao fim, tinha de contar a linha de novo: pensava na carta sobre a mesa. O homem lia com o jornal dobrado, no joelho, e leu duas vezes cada linha para entendê-la: pensava na carta sobre a mesa. O seu cachimbo apagou, não o acendeu, os olhos parados na mesma notícia, ouvindo apenas o seco bater das agulhas entre os dedos da mulher. Então, pegou a carta e abriu-a. Achou um pedaço de papel dobrado, com duas palavras: corno Manso, escritas com grandes letras recortadas de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Entregou o papel à mulher que, depois de ler, o olhou. Nenhum falou. A mulher se ergueu, segurando a carta na ponta dos dedos. Onde é que você vai? o homem perguntou. Queimar... ela respondeu. Não, ele disse. Dobrou o papel dentro do envelope azul e guardou-o no bolso. Juntou para a mulher a toalhinha que tinha caído no chão e continuou a ler o jornal e em cada linha, aquela noite, leu as duas palavras da carta.

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Comentário do conto Penélope, de Dalton Trevisan

No conto Penélope, de Dalton Trevisan, a aparente banalidade do enredo gira em torno de um casal de velhos que tem sua vida metódica abalada por uma série de cartas anônimas que promovem o ciúme paranóico do marido e o suicídio da mulher. Esta aparente banalidade se desfaz quando se observa a construção da linguagem e a maneira como o autor apresenta os fatos, criando um clima de suspense e expectativa. É notável seu intertexto com a personagem Penélope, esposa de Ulisses, não só pelo nome do conto e da personagem, mas, sobretudo, pela simbologia da fiação. O autor vale-se do mito de Penélope para “reinventar” a história por meio do recurso parodístico e criar uma nova história, uma nova situação condizente com os novos tempos e rumos da sociedade e do homem moderno.
A Penélope de Dalton é um espectro daquilo que já foi mais nobre e elevado na arte; espectro que não implica, necessariamente, morte, mas prorrogação e repetição (degradadas).
Ao parodiar o mito de Penélope, Dalton Trevisan inaugurou um “novo paradigma” ao instaurar uma inversão de sentido, proporcionando ao leitor uma versão diferente, em que a instituição familiar e o matrimônio não são vistos como instituições sagradas, mas passíveis de dissolução pelas atitudes do ser humano. É evidente, portanto, o diálogo intertextual e parodístico que o autor faz com o mito grego de Penélope, personagem famosa por sua fidelidade ao marido, posta à prova numa espera de vinte anos enquanto Ulisses estava ausente, lutando em Tróia e, na viagem de retorno para Ítaca, ele se envolve em uma série de aventuras que retardam sua volta. Durante sua ausência, Penélope é disputada por vários pretendentes e, para despistá-los, urde um plano: tecer, antes da escolha, a mortalha de Laerte, pai de Ulisses. Porém, para ganhar tempo, desfazia à noite o bordado feito durante a dia, até o regresso do marido, quando é recompensada por sua fidelidade. 
Embora Trevisan faça referência à personagem da mitologia, no conto, o autor faz uma inversão irônica deste mito, pois, se na versão mitológica, o que está em jogo é o amor, o encontro, a fidelidade e a indissolubilidade do casamento, no conto, os elementos são outros: a morte, o drama da infidelidade e a dissolução do casamento. Não há possibilidade de reencontro amoroso, porque não existe mais este “modelo” de casamento feliz. Trevisan apresenta uma característica negativa da instituição familiar e inverte os famosos “finais felizes”, apresentando a miséria comum, os dramas e as frustrações do homem em sociedade. O autor parodia estes “finais felizes” e desenvolve um contra-canto, demonstrado que, na sociedade moderna, as pessoas convivem com traumas, paranóias e medos. Mas, apesar de mostrar este lado mais “nefasto” do ser humano, Trevisan o faz de uma maneira surpreendente, pois ele não aponta, não culpa nem defende o marido por seu ciúme paranóico e doentio, ele limita-se a apresentá-lo, afinal, ele é “homem” e o ser humano comete falhas e enganos.
Esta apresentação “sem juízo de valor” do drama do marido chega ao leitor pela voz de um narrador onisciente, que penetra na consciência da personagem de tal modo que, em certos momentos, não fica evidente se é a voz do narrador ou o pensamento do marido: uma voz que se introjeta entre o discurso do narrador e do protagonista e que segue o fluxo de consciência.
Acendeu o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. Era sábado, recordou-se. Pessoa alguma tinha poder de fazer-lhe mal. A mulher pagara pelo crime. Ou – de repente o alarido no peito – acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua. (TREVISAN, 1979, p. 176).
A narrativa reconstitui o processo de construção de ciúme percorrendo o “itinerário” que vai do fluxo de consciência e da imaginação do marido aos acontecimentos concretos – a série de cartas anônimas deixadas na porta do casal todos os sábados enquanto saiam ao passeio rotineiro. Entre a evidência das cartas e a incerteza da traição, o narrador acompanha o conflito do marido e penetra em seu inconsciente afetado pelo ciúme, mas deixa a mulher numa redoma de mistério. Os pensamentos de Penélope são uma incógnita, pois não se sabe seu ponto de vista em relação aos fatos, ela aparece sempre tricotando sua toalhinha, envolta numa rede na qual é tanto senhora quanto objeto da trama.
A narrativa faz uma intersecção com o pensamento do marido e nesta paranóia de ciúme acaba deixando insinuações de que Penélope não seria tão inocente assim. De acordo com Kury, numa versão aberrante da lenda, “Penélope ter-se-ia entregue a todos os pretendentes (mais de cem), e desse adultério com todos eles teria concebido o deus Pan” (1999, p.313). No conto, o narrador intercala um discurso indireto livre que gera estas suspeitas da possível traição de Penélope, mas ficam apenas no plano do interdito, uma vez que não se conhece o ponto de vista da mulher.
Voltando as folhas, surpreendia o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recordou a legenda de Penélope, que desfazia de noite, à luz do archote, as linhas acabadas durante o dia e, à espera do marido, assim ganhava tempo de seus pretendentes. Calou-se no meio da história: ao marido ausente enganara Penélope? Para quem a mortalha que trançava? Continuou a estalar as agulhas após o regresso de Ulisses? (TREVISAN, 1979, p.173).
O narrador apresenta o discurso de um homem sem nome atormentado pela desconfiança da traição da mulher e que conhece o legendário de Penélope. O conto torna-se altamente significativo pelas associações entre as duas personagens que, propositalmente, chamam-se Penélope e igualmente aparecem relacionadas às fiandeiras, mas se distanciam pela oposição crucial entre vida e morte. Se, no mito, o que está em jogo é o amor que leva à vida conjugal, no conto, é a morte e a desconfiança que provoca a fatal separação do casal.
Pelas características das personagens do marido e da mulher que o narrador deixa entrever, há no conto uma forte oposição entre Eros e Thanatos, não só em termos de inversão mítica, mas também na estrutura interna da narrativa e do comportamento das personagens: amor e morte se entrelaçam o tempo todo na trama da vida. Na descrição do marido, por exemplo, ele é fortemente influenciado por Thanatos, pois ele está sempre de mal com a vida, veste-se de preto e planta cacto feroz – “Nem a uma rosa se atrevia a dar seu resto de amor” (TREVISAN, 1979, p. 171). Embora apresente esta característica sombria, o resto de amor que lhe sobrava era dedicado à mulher – a sua única companheira, descrita por ele com um tom de carinho e afeição que lembra o cantar de namorado das cantigas de amigo. Este sentimento que nutre pela companheira é quase uma “dependência”, uma vez que a simples possibilidade de a mulher o estar traindo gera toda a crise de desconfiança que o afastará para sempre da mulher e culminará com a perda definitiva do resto de amor que ele nutria – “Por cima do jornal admirava a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, eram azuis como no primeiro dia”(TREVISAN, 1979, p. 172). Mas o comportamento do marido demonstra ser o de uma pessoa insegura, que se fechou para a vida e “contamina” de uma carga “negativa” todos que convivem com ele. A visão um tanto pessimista da vida e o ciúme incontrolável e doentio em relação à mulher provocam a supremacia da morte sobre a vida, o que faz com que sua vida seja influenciada pela regência de Thanatos. A semente da desconfiança é plantada pelas cartas que funcionam como um “canto de sereia” traiçoeiro que enfeitiçou e seduziu o coração do velho, tornando-o cego e atraindo-o para as armadilhas de uma morte em vida ou da vida.
A esposa, no entanto, apresenta indicativos de que é um pouco mais feliz, ou de resquícios de felicidade, pois conserva, ainda, sinais de caridade e amor e de uma visão mais positiva da vida: usava vestido branco; na ausência do marido, trazia um osso para o cão vagabundo, era incapaz de matar uma galinha. Apesar destes indicativos, Penélope tem sua voz limitada e seus pensamentos silenciados, como se a influência de Eros fosse perdendo forças, ao longo do tempo, diante do “coração de ferro” de Thanatos.

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28 de setembro de 2013

Elegíada”, conto de Osman Lins


Esta é a verdade: agora eu estou só. Com mais um pouco, chegará a madrugada. As velas ficarão pálidas, os sinos dobrarão em tua homenagem; e, quando o sol vier, não iluminará teus olhos.
Mais algumas horas e nossos conhecidos te levarão para o Campo. Estarão um pouco tristes, mas não podem imaginar que imensa perda eu sofri. Dirão entre si: “Tinha de ser. Um deles havia que ir primeiro…” E acharão que já sou muito idoso, que minha capacidade de sofrer se extinguiu e que não tardarei a seguir-te. Não lhes ocorrerá talvez, que é justamente por ser velho que tua ida é mais triste. Se fora moço, minha saúde afastaria a dor. Mas eu estou velho. E muito só, abandonado – sou uma criança aflita, querida. Meus filhos acham agora que os superiores são eles; que devem governar-me. Fazem recolher-me cedo, não me permitem comer o que desejo e até ralham comigo. É um modo de mostrar que me amam. Mas eu não sinto grande profundidade nesse afeto. Há uma certa rispidez na maneira como eles procuram preservar-me, como se eu fosse meio tonto.
Também os netos, creio, não me querem como eu desejava. Sempre os imaginei como ingênuas crianças, as quais eu levaria pela mão a maravilhosas viagens e para quem inventaria histórias que ouviriam com prazer. Mas quase nunca eu os levo a passeio; e quando o faço, não consigo unir-me a eles, que trocam segredos, conversam em língua codificada, sorriem. (Suponho, mesmo, que muitas vezes troçam de mim.) E se tento contar-lhes uma história, não me levam a sério. Mas me recebem com alegria quando os visito, pedem a bênção ao vovô e levam meu chapéu para guardar. Observo, contudo, que não se sentem à vontade quando me beijam a mão e que o júbilo deles se prende muito mais aos brinquedos que lhes levo. E eu os olho sorrindo, com amargura, e penso nos anos que nos distanciam e no afeto que eles mal supõem existir.
Quanto aos amigos, tu sabes muito bem que não mais os possuo. Uns morreram; outros acharam na velhice um agradável pretexto para se tornarem brigões ou dementes; e o resto me aborrece pela insistência em me fazer acreditar ser bem mais velho que eles.
Só tu me restavas. Junto a ti eu podia ser eu mesmo, sem temor de parecer ridículo. Eras tu quem tinha a chave do meu caráter e do dom de encantar-me. (Mesmo a tua zombaria era uma forma de afeição.) E agora um duro silêncio te envolve e imobiliza. Vejo tuas mãos cruzadas, o lençol que te cobre, tuas feições tranqüilas. Sei que logo mais eles te levarão. Talvez, então, eu te beije a fronte. Não ignoro, porém, que me dói tua frieza de morta e é mais provável que beije teus cabelos. Sim, beijarei teus cabelos — que eu vi, de abundantes e negros, rarearem e encanecerem. Beijarei teus cabelos, querida; eles não mudaram com a morte. Tua fronte ficou mais límpida, o nariz mais fino, as faces se encovaram, a carne está rígida e as pálpebras não as fechaste com a suavidade de sempre. Teu cabelo, porém, continua intato; quando sopra o vento, ainda esvoaça; está vivo, é o mesmo que penteavas pela manhã e soltavas à noite, antes de dormir. E agora se bem não os houvesses despenteado, tu dormes. E eu me senti pesaroso e grave, como tantas vezes me senti junto a nossos filhos, quando eles estavam doentes e o sono lhes chegava pela madrugada, após uma noite inquieta e eu ficava junto a eles, sentado, olhando-os, até que tu vinhas e punhas a mão em meu ombro e fazias com que me fosse deitar. Agora, eu não conhecerei mais a doçura desse gesto. Talvez, daqui há pouco, venha alguém — um filho ou vizinho — que me induza a afastar-me de ti e deitar-me. Mas, quem quer que seja, virá com palavras. Tu, não: vinhas com o teu silêncio, com tua tranqüilidade, e fazias com que eu dormisse. Mas quando despertava, eras tu quem estava ao lado do enfermo. Isto, eles não saberão. É íntimo demais, exige um nível de compreensão mútua demasiado grande para ser revelado. Não lhes contarei.
Também não falarei a ninguém de certas coisas que guardo com imensa ternura e que, se contasse, me julgariam tonto. Não direi da emoção com que te vi, muitas vezes, fazer as mais corriqueiras tarefas. Durante anos, quase todos os dias cuidavas da casa. Eu te viam sem nada de especial. Mas vinha um dia em que eu te descobria a intimidade nesse trabalho. Via o cuidado com que afastavas a poeira, a precisão com que punhas os jarros em seus lugares, com que mudavas as toalhas, os panos; escutava teus passos e me comovia por ver como te entregavas a esses afazeres. E descobria um extremado amor nisso tudo, o que me fazia perceber como eras simples.
Lembro-me mesmo que um dia havias trabalhado muito e te deitaste cedo. Eu fiquei lendo, e, quando o sono veio, fechei as portas. Havia um silêncio tão grande! Os móveis brilhavam, não havia pó no chão; tudo em ordem, limpo, cuidado. Detive-me um instante à sala de jantar, como se pressentisse avizinhar-se um mistério. Contemplei o jarro de flores, na mesa. Tu mesma as havias colhido pela manhã. Senti tua presença diligente na limpeza, nas flores; o carinho que depositavas em tudo. E percebi que havia algo me envolvendo: cingia-me um princípio de angústia. Na cozinha, olhei para o fogo: apagara-se. Durante o dia, estivera ativo, quente. Agora, estava morto. Era cinza. O que aconteceu em seguida, foi tão ridículo e sutil, tão difícil de expressar, que nunca te contei. Eu chorei, querida. Penso que sofri uma decepção obscura e súbita, uma espécie de dor ante a pouca duração da vida, da nossa vida – não sei; é possível também que houvesse sentido, ante a simplicidade com que vivias, algo semelhante à pena que às vezes nos aflige ante um folguedo de criança. Mas é difícil explicar. Talvez o que eu houvesse sentido fosse o presságio disto: de que virias a morrer, que nosso fogo não mais seria aceso pela tuas mãos e que nunca voltarias a colhes flores para o nosso jarro. Seria? Que me dizes?
Oh! Mas eu estou delirando. Fitava-te tão intensamente, com tanta saudade, que já te supunha viva. Se eles soubessem disto, também sorririam de mim. Na minha idade, já não se pode ter pensamentos estranhos nem fazer confissões. Fica-se ridículo, querida. E eu tenho que aproveitar estes últimos momentos em que ainda estamos juntos. É a última oportunidade de falar-te, mesmo sem abrir os lábios, e contar as tolices que não contarei a ninguém. Quero te dizer, por exemplo, uma coisa esquisita, uma coisa que não compreendo: os fatos culminantes de nossas vidas, aqueles que nunca poderíamos chegar a esquecer, perderam hoje esse privilégio. Nosso casamentos não é mais importante que a lembrança conservada, como por milagre, de quando te vi, pouco antes da cerimônia, em teu traje de noiva. Tão bem me lembro como teus olhos brilhavam e como teu riso era alegre! E no momento em que fecharam a porta para teu primeiro parto, que eu não tive coragem de assistir? Antes, isso era um fato importante! Hoje, não: está no mesmo nível de um gesto teu ou de teu sorriso. Hoje ele é tão importante como a tua alegria – esse resto de infância que nunca perdeste – a tua alegrai quando eu te presenteava com uma caixa de bombons ou uma fruta. Às vezes, eu te trazia biscoitos. Tu os guardavas e eu te censurava, porque me parecias avara, pois nem os comia de uma vez, nem os repartias com outrem. Mas eu te censurava sem rancor, porque sabia que a tua avareza era um modo de prolongar, ingenuamente, uma lembrança minha. Também não poderei contar isto a ninguém. Dirão que me preocupo com migalhas ou invento qualidades que não tinhas. E agora, querida, com quem repartirei estas memórias? Tu te vais e o peso do passado é muito grande para que eu o suporte sozinho. As palavras – todos sabem – são mortalmente vazias para exprimir certas coisas. Quando nos sentávamos, sós, a recordar nossa vida, não eram elas que restauravam os fatos: éramos nós.
E agora, que já não existes, com quem poderei falar de coisas triviais e amadas, como teu pesar, por teres quebrado involuntariamente um presente que eu te dera e nossa alegria na primeira viagem de trem? Com quem poderia falar disto? Com quem irei comentar teu hábito de, quando eu me esquecia dos óculos, deixares que eu chegasse à esquina para só então me chamar? E eu vinha, ralhava contigo, perguntava quando deixarias de ser criança. Mais tardem lembrava-me do episódio e me ria, disfarçadamente, com medo que me vissem e dissessem: “Olha o velho rindo sem motivo…”
Mas eu não devia estar me lembrando dessas coisas. Talvez alguém tenha visto meu sorriso e julgará que não sinto a tua falta. “Ele não chorou — pensará. E agora, sorri. Está maluco; ou então nem sentiu.” Decerto, minha dor não é violenta. É cansada. Mas é tão vasta, tão desalentada e profunda… E vou ficar tão sozinho, querida…

Conto inserido na coletânea OS GESTOS.
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COMENTÁRIO:

O conto "Elegíada" fala da solidão e da dor “cansada, vasta e desalentada”  de um homem que, já velho, fica viúvo. No último momento, com o corpo da esposa morta, ele pensa a saudade, tem a última conversa “em silêncio” com a mulher e relembra que, agora, todos os fatos e gestos vividos terão a mesma dimensão de profunda importância (desde as datas festivas, os eventos como o casamento, o nascimento dos filhos, até os gestos mais triviais). A saudade do silêncio partilhado, a compreensão um do outro pelos gestos, a profunda solidão de ver-se sem a companheira. 



22 de setembro de 2013

Maria Teresa Horta. Lydia.


Levou os dedos de novo às costas e tacteou um pouco. Mexeu de cá para lá a ver se descobria alguma grossura, mas não sentiu nada; absolutamente nada. Vestiu a blusa mais fina a abotoar à frente, praticamente translúcida e durante o resto do dia quase se esqueceu fresca e leve daquela impressão, daquela comichão.
Ao fim da tarde, quando já fazia escuro, o ardor voltou: docemente, num incômodo sem causa. Lídia nem sabia afinal o que sentia. E quando o marido chegou para jantar encontrou a casa às escuras e fria. Como que vazia na escuridão opaca dos quartos. Gritou: “Lídia!”, mas ela não lhe respondeu logo, entorpecida, entontecida, como se tivesse bebido um pouco.
Realmente Lídia sentia muita sede.

A mãe vomitara sangue quando ela era muito pequena. Vira-a levar os dedos à boca e eles saírem sujos de sangue enquanto tossia sem conseguir parar. Num desespero sem nome. Agarrara-lhe um dos braços abaixo do cotovelo e não o largara mais até a hemoptise acabar, pouco a pouco, de forma surda e equívoca.
O avô que era médico deitara a mãe num cadeirão baixo e largo na casa de jantar, dera-lhe um comprimido, um copo de água gelada. Pusera-lhe um saco de água quente aos pés e sentara-se numa cadeira em frente, hirto, à espera.
Estava muito branco e silencioso, como que a escutar aquele pequeno silvo que saia da boca da mãe, aquele borbulhar contínuo no peito da mãe enquanto tossia e levava um guardanapo de linho à boca e ele voltava sempre manchado de encarnado vivo. A mãe inclinava a cabeça para trás no espaldar forrado do cadeirão e de olhos fechados tentava dominar aquele pequeno repuxo de sangue que lhe subia do corpo a aflorar os lábios cerrados e lívidos; a perderem os contornos.
Lídia lembrou-se da mãe e teve medo, inexplicavelmente, ao lembrar aquelas marcas que julgara perceber nas costas quando olhara no espelho. Simétricas. Totalmente simétricas: em cada omoplata numa pequeníssima dor que começava agora a descer pelos braços, à flor da pele. Um formigueiro, era isso. Como um formigueiro na parte exterior dos braços que prendeu ao pescoço do marido inclinado sobre a cama ainda de casaco vestido tal como chegara da rua.
“Teus braços tão quentes!” – admirou-se ele, beijando-a na boca. Mas ela recuou porque lhe era insuportável o contacto do seu corpo. Nauseada. Percebeu então que asfixiava; as janelas fechadas da casa pareceram-lhe por momentos terem grades.
Lídia recuou enrodilhando a colcha de renda da cama e disse baixo, como se estivesse a perder as forças: “Sufoco”. E não se levantou para fazer o jantar. Dormitou um pouco antes de o marido começar a despir-se para se deitar. Mas quando ele se estendeu a seu lado ela gritou. Um grito estrídulo e modelado.
A meio da madrugada, Lídia acordou, aterrada. “Foi um sonho”, pensou, mas logo percebeu que realmente não sentia os braços. Estavam tão leves que mal os sentia. Sentou-se na cama banhada por um suor morno que lhe corria pelas axilas, num cheiro a erva seca, a palha. Um suor que lhe colava os cabelos ao pescoço, lhe escorria pela cara, à volta da cintura. Nas virilhas também: pequenas bagas de suor a descerem pelas pernas que limpou devagar com a ponta dos dedos trêmulos. Levantou-se cambaleando e foi vomitar, curvada na retrete, um líquido amarelo, sujo, nauseabundo. Depois, quando lavou a boca à torneira do lavatório, olhou-se novamente no espelho e reparou nos olhos: afastados, de um azul lívido. Esgarçado, que não conhecia. Confusa, voltou a olhar e não se reconheceu no rosto no rosto que viu refletido no espelho: comprido e lívido, malares muito salientes, os olhos separados e sem cor.
Abriu a torneira toda, deixou correr a água e mergulhou nela a cara sem no entanto conseguir acalmar aquela febre. Aquele tremor, aquela chama a queimar-lhe o corpo todo. E ficou ali durante muito tempo, desorientada, sem conseguir entender o que se passava consigo. Sentindo-se desesperadamente só. Agachada a um canto da banheira.
“Tem graça – disse o marido quando se levantou de manhã -, cheira a rio, aqui.” –Ergueu um pouco a cabeça, olhando à roda. Lídia encolheu-se debaixo dos lençóis, os pulsos latejantes e novamente com aquela impressão esquisita e aguda nas costas, no pescoço, nos ombros. Encolheu-se mais, os joelhos unidos quase ao pé da boca, a sentir os braços dormentes. Ou melhor: ausentes.
“Acho-te com um ar estranho” – disse-lhe o marido parando para se despedir dela mesmo junto à cama. Lídia encolheu-se mais, muda. E sem a beijar, distraído, perguntou-lhe por que não ia ao médico da parte da tarde.
Lídia abanou a cabeça que sim e fechou os olhos depressa, na pressa de se afastar do seu olhar inquiridor, aterradoramente perto, como se de um momento para o outro a fosse agarrar. Então soube que não suportaria que ele a tocasse e fingiu que havia adormecido de novo. Mas logo que o ouviu sair, bater com a porta da rua, saltou num movimento único e ficou de pé no meio do quarto tremendo muito. Em desequilíbio. Entreabriu os braços naquele gesto largo que vinha fazendo por gosto há umas semanas e logo os seus pés tocaram por inteiro o chão, equilibrando-a.
Foi até ao espelho grande do guarda-vestidos e virando-se tentou novamente ver. As manchas lá estavam, maiores mesmo, dois pequenos círculos rosados e grossos. Tocou primeiro um, depois o outro e soube-lhe bem acariciar-se assim, aliviando um tudo nada aquele ardor. Aquela comichão. Aquela comichão dormente.

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Comentário do conto. Lydia...


O extraordinário conto de Maria Teresa Horta é conduzido por uma narradora heterodiegética, omnisciente, que, com ostensiva liberdade, devassa a interioridade da personagem principal – Lídia – desvendando os seus pensamentos e sentimentos, sem nenhum tipo de controle. Tal estatuto narrativo permite que tenha domínio pleno dos fatos narrados.
Uma leitura do texto que flutuasse apenas em volta do seu sentido manifesto, seria, decerto, tão limitada quanto é a compreensão do marido de Lídia para o fenômeno da radical mudança de comportamento dela, interpretada como loucura. Nestes termos, o final do conto seria visto como uma tragédia, desencadeada pelo suicídio da personagem, que, convicta de que se tornara uma ave, abre os braços (asas) e pula da janela para a morte.
Só uma leitura atenta para o sentido latente do texto dá conta da riqueza da mensagem por ele veiculada. Assim, dentre as várias formas de compreender o conto, optamos pela leitura do mesmo enquanto alegoria da libertação da mulher. Assim, a aparente loucura de Lídia nada mais é que um signo da “metamorfose interior” pela qual passa a personagem. A aparente loucura de Lídia pode ser vista como a metáfora da mudança gradativa, realizada por meio de um processo de transformação interior da personagem, que a conduz para uma tomada de consciência acerca da sua condição existencial, do seu estar na vida presa a convenções altamente limitadoras e repressoras, originadas de costumes milenares que subalternizam e tratam a mulher de forma desigual e injusta no contexto social e familiar.
A parte final do conto, com a imagem de Lídia alçando o Vôo, representa metaforicamente o ponto culminante desse processo. O salto para o alto representa literariamente um salto de uma situação negativa e repressora para uma outra oposta e libertadora, feita por opção do sujeito. Vale observar que a mudança de Lídia, sendo interior, não se processa de forma brusca e imediata. Ela ocorre lenta e gradativamente.
Lídia não percebe que lhe nascem asas, apenas vê uma mancha vermelha, porque as asas eram simbólicas, significando a mudança interior, logo não poderiam ser percebida através do espelho. Este não poderia refletir o que se passa no interior da personagem: as mudanças de ordem psicológicas, a reviravolta dos sentimentos, a subversão dos valores, as mudanças em sua visão de mundo, as rupturas com os padrões de comportamento vigentes.
O conto, de orientação feminista, se afirma como uma alegoria do despertar da mulher para a sua condição na sociedade, para o papel que lhe é destinado no âmbito das limitadas possibilidades possíveis.
O texto sugere, através de uma alegoria das asas, a libertação da mulher que vive de acordo com os padrões convencionais da sociedade, à medida que ela rejeita o lugar que lhe é marcado no grupo social e parte para a busca de “um lugar não-marcado”, o qual não seria, necessariamente, o de esposa e dona de casa, limitado ao espaço do lar e da família. Como mulher da classe média, casada, ela ocupa o lugar que lhe é marcado, onde deve permanecer e cumprir os seus deveres. É isto o que se espera dela, esse é o comportamento que deve ter, dentro dos princípios da normalidade estabelecidos pelo grupo social.
O processo de transformação de Lídia avança por etapas, é doloroso e alvo da incompreensão dos que a rodeiam. Todavia, uma vez iniciado, não tem caminho de volta... prossegue até à libertação ser conseguida.
O final do conto é de uma tocante poeticidade, com a imagem do vôo da personagem rumo a libertação e ao recomeço de uma vida até então vivida em função do que dela esperava a família e o grupo social, tal como viveram sua avó, sua mãe ...

17 de abril de 2013

Osman Lins. Cadeira de Balanço


Júlia Mariana levou as mãos ao estômago. Mas a ânsia, agravada nos últimos dias por uma fadiga que nem o sono lograva dissipar, não cessava.
Deu alguns passos, sentou-se no lugar predileto do esposo – uma cadeira ampla em cujos braços ele apoiava as mãos fortes e onde permanecia longas horas calado. Ah! Esses silêncios, esses silêncios... Mas para que pensar neles? Sentada na cadeira de Augusto, a balançar-se de leve, sentia-se tão bem! Só mesmo ali conseguia desoprimir o peito - castigado pelo ventre crescido- e respirar com alívio. Para que pensar em coisas tristes? 
Na parede branca, em sua moldura dourada que contrastava com a mobília pobre, o grande espelho não refletia a imagem. Júlia Mariana achou bom que assim fosse: não queria se ver. Não queria ver as manchas pardacentas no rosto, na barriga enorme e as pernas inchadas, que a martirizava tanto quando tinha de andar. E os pés?...
Como estariam? Ergueu-os, curvou-se um pouco: lívidos, com as veias ocultas sob a inchação, tinham a aparência de um ex-voto de cera.
_ Abstenha-se de carne – dissera o doutor. Abstenha-se de sal. E faça pouco esforço, entende? Pouco esforço.
A criança moveu-se. Júlia Mariana pôs-se a observar os leves tremores que seus movimentos causavam.
-Nascerá? – pensou. Terei forças, fraca, depauperada como estou? Faça pouco esforço... entende? Pouco esforço.
Ora... Tinha que lavar ainda as camisas de Augusto, acender o fogo, pôr a mesa, preparar o jantar, servi-lo. E lavar os pratos, depois, se já não estivesse exausta. Faça pouco esforço... Bem gostaria de obedecer. Sentia-se bem ali, mas não era possível balançar-se a tarde inteira. Tinha tanto que fazer!
Arrastando-se nos pés grossos, foi buscar as camisas. Apanhou a bacia, o sabão, dirigiu-se ao quintal.
Quando chegou à bomba, estava ofegante. Apoiou-se à alavanca. No alto, sobre o quintal feio e sujo, brilhava o calmo sol das quatro horas. Grandes nuvens claras passavam, tão vagarosas que mal se notava o seu vôo. Uma mulher, nas vizinhanças, batia roupa e cantarolava.. Ah! – lembrou-se Júlia Mariana. É tão bom cantar! Nunca mais cantei... Uma aragem fresca soprou em seu rosto e agitou de leve algumas flores raquíticas, risos-de-maria e margaridas, murchos, cercados de mato, que sufocavam ao pé do muro ferido. Nunca mais pude aguar meus canteiros. Nunca mais. E começou a acionar lentamente a alavanca.
A cada vaivém sua respiração tornava-se mais difícil e mais exaustiva a tarefa, até que sua cabeça pareceu flutuar, num giro silencioso que foi morrendo e cessou mãos na água.
Baixou-se, mergulhou-as na água. Tinha que lavar as camisas. Mais tarde, se não as encontrasse no arame, Augusto ficaria aborrecido e haveria de perguntar-lhe o que andara a fazer a tarde inteira. E já bastava o afastamento dele, que aumentava sempre, desde que a cintura dos vestidos... Ora, para que pensar em coisas tristes?
Mas como lhe doíam as pernas, como era difícil o equilíbrio! Susteve-se à bomba e apoiou a fronte nas mãos, esperando que a dor cessasse. Como isto maltrata, meu Deus! Nunca mais cantei, nunca mais aguei minhas flores... Mais nítida, cresceu, zuniu. Aturdida, ela se sentiu rodopiar, rápida, vertiginosamente, num mundo escuro, oscilante, cheio de riscos luminosos. Estendeu os braços, segurou-se à alavanca: teve a impressão de que o ferro se encurvava, de que cedia ao peso do seu corpo. Meu Deus, amparai-me!
Voltou para dentro, devagar, tornou à sala de frente. Sentou-se outra vez na cadeira de Augusto e recomeçou a balançar-se. Em breve, olhos fechados, a boca entreaberta, deliciava-se com antigas e amáveis lembranças: certo baile, momentos do noivado, uns sequilhos que sua mãe sabia preparar...
Ah! Era bom estar sentada ali. E como estava silenciosa a tarde e que sossego tão grande havia no mundo! Mas que trabalho fizera para merecer essas recompensas? Não fizera o jantar, não lavara as camisas. E quando ele chegasse... Quando chegasse, iria reclamar. Não responderia, não diria uma palavra- e mais tarde, quando morresse, ele teria remorsos, se arrependeria. Quando eu estiver morta, nessa sala... Mordeu a polpa do dedo polegar, fixou no ventre os pequenos olhos encovados. O remorso passaria logo. Não faltavam mulheres, ele se casaria novamente – e seus cabelos, suas mãos, até aqueles silêncios enormes, que tanto a incomodavam, tudo pertenceria à outra. Oh! Meu Deus, fazei com que eu viva, fazei com que ele me queira novamente, dai-me forças e eu farei, só para Vós, um canteiro de ... de cravos, ou rosas brancas, ou lírios...
Mas quem a ouviria? Como chegaria aos céus uma súplica muda e quem sabe se impura? E depois, todas as flores pertenciam a Deus. Ela não tinha o que dar, não tinha o que oferecer. Inclinou o rosto e começou a chorar.
Quando Augusto voltou, o pranto cessara mas seus olhos ainda estavam vermelhos. Sem olhá-la, ele jogou ao sofá um jornal e o chapéu, tirou o paletó, a gravata e pendurou-os num gancho. (Era o ritual da chegada.) Abriu a janela, apanhou o jornal, tocou no ombro da mulher. Júlia Mariana se ergueu com esforço e ele ocupou o lugar.

Osman Lins. Cadeira de Balanço. IN: Os Gestos. Rio, Melhoramentos, 1979.


Comentário do conto "Cadeira de Balanço".


“Cadeira de Balanço” é mais um interessante conto de Osman Lins, inserido na coletânea “Os Gestos”. Neste livro encontra-se o rigor formal característico deste autor - artesão da palavra -, além de entrar em contato com os personagens inseridos num ambiente doméstico opressor. Nos contos de Os Gestos, o silêncio representa a impotência das personagens.

Neste conto, o autor apresenta um aspecto inusitado ao formato usual das narrativas: uma abordagem predominantemente lírica da condição humana, observável na forma como expõe os sentimentos, os relacionamentos afetivos, e as limitações e incapacidades do ser humano perante a vida. Para isso, Osman Lins utiliza-se largamente da análise do pensamento da personagem feminina, de seus fluxos de consciência mais íntimos, e da análise de seus pequenos gestos, simples e singelos, mas carregados de significado e sentimento, nunca fugindo do contexto da impotência do ser humano frente às situações da vida. 

"Cadeira de balanço", um conto breve, todo ele transcorrido no pensamento da personagem Júlia Mariana, uma mulher casada e grávida. É uma gestação sob riscos, que requer muitas restrições alimentícias e muito repouso, ambas as coisas praticamente impossíveis de serem cumpridas, porque ela precisa cumprir os afazeres domésticos, cuidar do marido, Augusto, que dela já se afasta, talvez, pelo estado alterado do corpo da esposa, inchada, indisposta, com as veias aparentes com a qual não dialoga nem demonstra o mínimo interesse pelo seu bem estar, sua saúde... Trata-se, portanto, de uma relação fria, pautada num aflitivo silêncio, numa sistemática ausência de comunicação. 

Júlia Mariana só se consola quando está na cadeira de balanço do marido, onde pode descansar o corpo pesado e sofrido de uma gravidez complicada. Uma tarde, não consegue cumprir seus afazeres e pensa (todo o conto é o pensamento da personagem) que, quando morrer, Augusto sentirá o valor dela; depois, se arrepende, porque são muitas as mulheres disponíveis e outra ocupará seu lugar. É assim, perdida nos pensamentos e sem concluir suas tarefas domésticas, que o marido a encontra, no “ritual de chegada”, quando volta do trabalho, e, sem uma palavra, apenas com o gesto de tocá-la no ombro, faz com que ela saia da cadeira de balanço para que ele sente e leia o jornal. Sequer a olhá-la, sem uma indagação sobre como passou o dia. Nada... Somente a indiferença, a atitude de superioridade machista e insensível.


15 de março de 2013

Machado de Assis. A Cartomante


 Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
 
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Comentário do conto A Cartomante. M. de Assis


O conto A Cartomante, de Machado de Assis, mostra a visão objetiva e pessimista da vida, do mundo e das pessoas (abolição do final feliz). A autor faz uma análise psicológica das contradições humanas na criação de personagens imprevisíveis, jogando com insinuações em que se misturam a ingenuidade e malícia, sinceridade e hipocrisia.
Crítica humorada e irônica das situações humanas, das relações entre os personagens e seus padrões de comportamento. Linguagem sóbria que, entretanto, não despreza os detalhes necessários a uma análise profunda da psicologia humana.
Envolvimento do leitor pela oralidade da linguagem. A historia é repleta de "conversas" que o narrador estabelece freqüentemente com o leitor, transformando-o em cúmplice e participante do enredo (metalinguagem).
Citação de um autor clássico (shakespeare) intertextualidade; reflexão sobre a mesquinhez humana e a precariedade da sorte humana. Os aspectos externos (tempo cronológico, espaço, paisagem) são apenas pontos de referência, sem merecerem maior destaque.
A Cartomante é um conto onde podemos observar características marcantes do estilo de Machado de Assis. O uso de metáforas constantes, o comportamento imprevisível dos personagens e seu valor filosófico, o uso de comparações superlativas, bem como a ambigüidade em seus personagens.
O autor usa intertextualizações literárias, e o recurso da narrativa onisciente, para dinamizar o relato da história acentuando os momentos dramáticos do texto. Usa este recurso que eleva e prolonga o suspensa da história, mantendo o leitor atento durante todo o desenrolar do conto.
Sem estes ingredientes, sem dúvida o texto não teria a mesma dinâmica e seu epílogo não teria a mesma ênfase. Sem os pretextos machadianos facilmente saberíamos o desfecho da história ao lermos suas primeiras linhas. O uso destes atributos faz com que a historia gire em torno de seu próprio eixo dramatical sem que percebemos o uso desta técnica literária.
A historia é narrada em terceira pessoa. Existe a presença onisciente do autor, que usa desta onisciência na narração e descrição dos fatos. O uso constante de uma voz onisciente é importante para dinamizar o relato da historia acentuando os momentos dramáticos do texto e conflitos internos dos personagens, fortalecendo seu epílogo.
Sem essas características o texto tornar-se-ia monótono, pois a primeira leitura saberíamos de antemão seu desfecho. Também através deste recurso, o autor vai situando o leitor durante o curso da historia, ilustrando fatos e intertextualizando a narrativa.
Embora a trama gire em torno de 4 personagens principais Vilela, Camilo, Rita e a cartomante (incógnita), existem outros personagens que não participam diretamente na trama, mas suas participações são determinantes no enredo da história.
A morte da mãe de Vilela, que é uma personagem secundária tem papel fundamental no envolvimento amoroso dos personagens Camilo e Rita. O autor analisa e enfatiza psicologicamente todos os personagens preconizando seus conflitos internos bem como seus temores.


Fonte: Biblioteca/Português/Livros - resenhas e análises/Contos Escolhidos de Machado de Assis
 

 

6 de março de 2013

A Menina de Lá. Conto de Guimarães Rosa


Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes. 
Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. – "Ninguém entende muita coisa que ela fala..." – dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: - "Ele xurugou?" – e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: - "Tatu não vê a lua..." – ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida. 
Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. – "Nhinhinha, que é que você está fazendo?" – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: - "Eu... to-u... fa-a-zendo". Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha? 
Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: - "Menino pidão... Menino pidão..." Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: - "Menina grande... Menina grande..." Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: - "Deixa... Deixa..." – suasibilíssima, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraças espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim. 
Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – "Cheiinhas!" – olhava as estrelas, deléveis, sobrehumanas. Chamava-as de "estrelinhas pia-pia". Repetia: - "Tudo nascendo!" – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – "A gente não vê quando o vento se acaba..." Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - "Alturas de urubuir..." Não, dissera só: - "... altura de urubu não ir." O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - "Jabuticaba de vem-mever..." Suspirava, depois: - "Eu quero ir para lá." – Aonde? – "Não sei" Aí, observou: - "O passarinho desapareceu de cantar..." De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: - "A Avezinha." De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de "Senhora Vizinha..." E tinha respostas mais longas: - "Eeu? Tou fazendo saudade." Outra hora falava-se de parentes já mortos, ela riu: - "Vou visitar eles..." Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: - "Ele te xurugou?" Nunca mais vi Nhinhinha. 
Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres. 
Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: - "Eu queria o sapo vir aqui" Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas uma bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: - "Está trabalhando um feitiço..." Os outros se pasmaram; silenciaram demais. 
Dias depois, com o mesmo sossego: - "Eu queria uma pamonhinha de goiabada" – sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – "Deixa... Deixa..." – não a podiam despersuadir. Mas veio vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou , quentinha. A Mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos. 
Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queria versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão. 
O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – "Mas, não pode, ué..." – ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leito, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. – "Deixa... Deixa..." – se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas. 
Daí a duas manhãs quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca lhe vira, pular e correr por casa e quintal. 
- "Adivinhou passarinho verde?" – Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse. 
E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais. 
Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de – "Menina grande... Menina grande..." – com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava. 
Agora, precisavam de mandar um recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhantes de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado de satino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites de verdes brilhantes... A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade? 
O Pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda Nhinhinha a morrer... 
A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou – o sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha. 

(in Primeiras Estórias, João Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira)

Comentário do conto A Menina de Lá, de G. Rosa


O conto "A menina de lá" é narrado em terceira pessoa. Entretanto, em um momento do texto, o narrador também passa a ser personagem ( "Conversávamos, agora"), em outros, funciona como um narrador testemunha dos fatos, ora mais próximo, ora distanciado. Sabe de todos os acontecimentos por presenciá-los e por ouvir falar deles, porém, não diz a revelação que Nhinhinha fez para Tiantônia, quando apareceu o arco-íris. Isso só acontecerá depois da morte da menina. 

Semanticamente é possível perceber que a menina não pertence ao cá ( terra), mas sim ao lá (céu), pela presença de palavras ligadas ao universo do mundo do lá: lua, estrelinhas, céu, alturas, aves, mortos, saudade, milagre, a mãe não tirava o terço da mão, e a menina mora no "Temor-de-Deus" e principalmente a palavra arco-íris, dentre outras. 
Arco-íris é a palavra-chave, pois remete ao imaginário coletivo de fazer um pedido ao arco-íris quando este aparece no céu. Pela metonímia "caixão colorido", Nhinhinha pede a morte e metaforicamente, o que ela deseja, acontece. Há, nesse momento, o clímax do conto, pois é o confronto entre os dois mundos: o cá ( mundo terreno), de Tiantônia, em que a morte é vista como ruim, repreendendo a menina versus o lá, que para Nhinhinha é a alegria , a libertação de um mundo que não é o seu, esperando cumprir o seu destino e realizar o seu desejo de ser "a menina de lá". Desta forma, fecha-se o círculo do universo premonitório traçado pelo conto, calcado no destino fatídico de uma menina que não pertence ao mundo de cá, entretanto possui a magia de um outro mundo encantado: o mundo da criação artística. 

Autora do comentário: Aparecida do Carmo Frigeri Berchior



20 de janeiro de 2013

Guimarães Rosa. A volta do marido pródigo.

O conto é muito longo, por isso daremos apenas o seu resumo. Para lê-lo na íntegra, procurar na coletânea
Sagarana, de Guimarães Rosa.
Na introdução do conto o cenário é apresentado: homens trabalham duro escavando o solo para dele retirar minério. Seu Marra é o encarregado, de olho em todos para que o trabalhe ande a contento. Lalino Salãthiel é um mulato vivo, malandro, que chega tarde ao trabalho e inventa desculpas. Em vez de trabalhar duro, como os outros, inventa histórias, conta causos. A maioria admira-o. Mas há quem enxergue nele apenas um aproveitador. Generoso acha que Ramiro, um espanhol, anda rondando a mulher de Lalino.
Laio, naquela noite, não comparece à casa de Waldemar para a aula de violão. No outro dia, fica em casa vendo umas revistas com fotografias de mulheres. À tarde, vai à empresa e acerta as contas com Marra. Está disposto a ir embora. Na volta para casa, encontra Ramiro, o espanhol que lhe anda cercando Maria Rita. Nasce, imediatamente, um plano: tomar um dinheiro emprestado do espanhol. O argumento é convincente: quer ir embora sem a mulher, mas falta-lhe dinheiro para viajar. Ramiro empresta-lhe um conto de réis. Com o dinheiro no bolso, Laio pegou o trem na estação rumo à capital do País. Seu Miranda, que foi levá-lo, ainda tentou dissuadi-lo. Não conseguiu.
Um mês depois, Maria Rita ainda vivia chorando, em casa. Três meses passados, Maria Rita estava morando com o espanhol. Todos diziam que Laio era um canalha, que vendera a mulher para Ramiro. E assim, passou-se mais de meio ano.
As aventuras de Lalino Salãthiel no Rio de Janeiro excederam à expectativa. Seis meses depois, Laio estava quase sem dinheiro e começou a sentir saudades. Tomou a decisão: ia voltar. Separou o dinheiro da passagem e programou uma semana de despedida: "uma semaninha inteira de esbórnia e fuzuê". Acabada a semana, Laio pegou o trem: queria só ver a cara daquela gente quando o visse chegar!
Enquanto atravessava o arraial, Laio teve que ir respondendo às chufas dos moradores. Finalmente, chegou à casa de Ramiro, o espanhol que se apossou de Ritinha. Laio informou-lhe que estava de volta para devolver o dinheiro do empréstimo. Ramiro, querendo evitar que Laio visse Ritinha, perdoou o empréstimo: a dívida já estava quitada. Mas Laio insistiu: "eu quero-porque-quero conversar com a Ritinha"! E disse isso com a mão perto do revólver. O espanhol concordou, desde que não fosse em particular. De repente, Laio esmoreceu: não queria mais ver a Ritinha. Queria só pegar o violão. Depois, quis saber se o espanhol estava tratando bem a Ritinha. E despediu-se. Primeiro pensou em ir à casa de seu Marra. Depois, dirigiu-se para a beira do igarapé: era tempo de melancia. Depois de apreciar a paisagem, Laio deu de cara com seu Oscar. Trocaram idéias, e Oscar prometeu que ia falar com o velho (Major Anacleto) e tentar arranjar um trabalho para Laio na política.
Além de chefe político do distrito, Major Anacleto era homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar. Quando Oscar lhe falou de Laio, ele foi categórico: aquilo é um grandessíssimo cachorro, desbriado, sem moral e sem temor a Deus... Vendeu a família, o desgraçado.
Tio Laudônio era irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Pois foi Tio Laudônio que intercedeu a favor de Laio. O Major concordou. Era mandar chamar o mulato no dia seguinte.
Mas Laio não apareceu no dia seguinte. Só apareceu na fazenda na quarta-feira de tarde. E topou logo com o Major Anacleto. Quando o Major tentou expulsá-lo da fazenda, Laio deu-lhe notícias de todas as manobras políticas da região, quem estava com o Major e quem o estava traindo. Já descobrira a estratégia do Benigno para derrotar o Major na próxima eleição. Em troca de tanta informação, pediu a proteção do Estêvão, o capanga mais temido do Major. Assim, o povo do arraial ficou sabendo que Laio era o cabo eleitoral do Major Anacleto e, como tal, merecia respeito.
Major Anacleto, depois do relatório de Laio, mandou selar a mula e bateu para a casa do vigário. O padre teve de aceitar leitoa, visita, dinheiro, confissão e o cargo de inspetor escolar. Antes de o Major sair, o padre contou-lhe que Laio estivera na igreja. Também se confessara e comungara e ainda trocara duas velas para o altar de Nossa Senhora da Glória.
 Quando o Major e Tio Laudônio pasaram em frente à casa de Ramiro, o espanhol aproveitou para denunciar Lalino: o mulato estava de amizade com Nico, o filho do Benigno. Foram juntos à Boa Vista, com violões, aguardente, e levando também o Estêvão. O Major ficou danado de zangado. Não via a hora de encontrar o Laio.
Depois de peregrinar por todas as bandas, o Major voltou para a fazenda, onde Laio já o esperava. Primeiro o Major xingou o mulato de muitos nomes feios, depois Laio teve tempo de explicar: era tudo estratégia política para saber das coisas. Passara, sim, em frente à casa de Ramiro, mas não o insultara. Dera vivas ao Brasil porque não gostava de espanhóis. E tinha mais (coisa que o Major não sabia): espanhol não vota porque é estrangeiro.
Houve um período de calmaria política em que Laio ficou tocando viola e fazendo versos no meio da jagunçada do Major. Um dia, pediu um favor a seu Oscar, filho do Major: que ele fosse ter com Ritinha e conversasse com ela, mas sem dizer que era da parte do Laio. Oscar foi e fez o contrário: falou mal do mulato, disse a Ritinha que o marido andava fazendo serenata para outras mulheres. Aproveitou a proximidade e pediu-lhe um beijo. Ritinha expulsou-o, não sem antes confessar que gostava mesmo era do Laio, que ia morrer gostando dele. De volta, seu Oscar contou o contrário: que Ritinha não gostava mais do marido, gostava de verdade era do espanhol.
Certa tarde, depois de dormir um pouco na cadeira de lona, o Major foi acordado com uma barulheira dos diabos. O mulherio no meio da casa, os capangas lá fora, empunhando os cacetes, farejando barulho grosso. Ritinha jogou-se aos pés do Major e suplicou-lhe proteção. Que não deixasse os espanhóis levá-la à força dali. O Ramiro, com ciúmes, queria matá-la, matar o Laio e, depois, suicidar-se. Disse tudo isso chorando e falando na Virgem Santíssima.
O Major mandou chamar o Eulálio e foi informado de que o mulato estava bebendo juntamente com uns homens que chegaram de automóvel. Foi a conta: o Major pensou que eram da oposição e começou a xingar o Laio. Cabra safado, traidor. Ia levar uma surra, pelo menos isso. Tio Laudônio procurava acalmá-lo. De repente, lá vem o Laio dentro de um automóvel. E a surpresa foi geral. Era gente do governo, Sua Excelência o Senhor Secretário do Interior. Aí o Major desmanchou-se em sorrisos e gentilezas. E a autoridade satisfeita, elogiando muito o Laio, pedindo ao Major que, indo à capital, levasse o mulato junto.
O Major, contentíssimo, mandou trazer Maria Rita para as pazes com Laio. Convocou a jagunçada e ordenou: "mandem os espanhóis tomarem rumo"! Se miar, mete a lenha! Se resistir, berrem fogo!

Guimarães Rosa. A volta do marido pródigo: In Sagarana, de Guimarães Rosa. Rio de Janeiiro, Ed. José Olympio, 1979.

Comentário do conto "O Marido Pródigo".


Neste conto, farto em citações de lugares e personagens da região de Itaguara,  os animais se transformam em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber.

A personagem principal- Lalino - é descrita pelo autor como um ladino que vende a mulher para dedicar-se a aventuras na cidade grande, mas depois se arrepende, volta para sua região e, malandramente, reconquista sua posição e sua mulher.

O conto organiza-se como  uma paródia da "parábola do filho pródigo”, e apresenta traços de humor, presentes, principalmente, na maneira pela qual a personagem protagonista é caracterizada como malandro folclórico. Essa questão também é amparada na concepção de mundo às avessas presente na narrativa, na qual  não existe julgamento moral a respeito de nenhuma das atitudes de Lalino, que poderiam, segundo o senso comum, ser consideradas “más”. Também, as personagens do texto ditas respeitáveis são descritas como “não tão respeitáveis assim”. No entanto, em qualquer caso, a leveza e a ironia com que tais situações de desregramento moral são apresentadas amenizam a seriedade que o tratamento desses assuntos poderia assumir.
Na releitura de Guimarães Rosa há uma visão bem diferente daquela encontrada no ensinamento moral que a parábola pretendeu passar. No conto, o que importa é retratar a personagem do malandro, do típico brasileiro que, para tudo, dá um “jeitinho”.