17 de abril de 2013

Osman Lins. Cadeira de Balanço


Júlia Mariana levou as mãos ao estômago. Mas a ânsia, agravada nos últimos dias por uma fadiga que nem o sono lograva dissipar, não cessava.
Deu alguns passos, sentou-se no lugar predileto do esposo – uma cadeira ampla em cujos braços ele apoiava as mãos fortes e onde permanecia longas horas calado. Ah! Esses silêncios, esses silêncios... Mas para que pensar neles? Sentada na cadeira de Augusto, a balançar-se de leve, sentia-se tão bem! Só mesmo ali conseguia desoprimir o peito - castigado pelo ventre crescido- e respirar com alívio. Para que pensar em coisas tristes? 
Na parede branca, em sua moldura dourada que contrastava com a mobília pobre, o grande espelho não refletia a imagem. Júlia Mariana achou bom que assim fosse: não queria se ver. Não queria ver as manchas pardacentas no rosto, na barriga enorme e as pernas inchadas, que a martirizava tanto quando tinha de andar. E os pés?...
Como estariam? Ergueu-os, curvou-se um pouco: lívidos, com as veias ocultas sob a inchação, tinham a aparência de um ex-voto de cera.
_ Abstenha-se de carne – dissera o doutor. Abstenha-se de sal. E faça pouco esforço, entende? Pouco esforço.
A criança moveu-se. Júlia Mariana pôs-se a observar os leves tremores que seus movimentos causavam.
-Nascerá? – pensou. Terei forças, fraca, depauperada como estou? Faça pouco esforço... entende? Pouco esforço.
Ora... Tinha que lavar ainda as camisas de Augusto, acender o fogo, pôr a mesa, preparar o jantar, servi-lo. E lavar os pratos, depois, se já não estivesse exausta. Faça pouco esforço... Bem gostaria de obedecer. Sentia-se bem ali, mas não era possível balançar-se a tarde inteira. Tinha tanto que fazer!
Arrastando-se nos pés grossos, foi buscar as camisas. Apanhou a bacia, o sabão, dirigiu-se ao quintal.
Quando chegou à bomba, estava ofegante. Apoiou-se à alavanca. No alto, sobre o quintal feio e sujo, brilhava o calmo sol das quatro horas. Grandes nuvens claras passavam, tão vagarosas que mal se notava o seu vôo. Uma mulher, nas vizinhanças, batia roupa e cantarolava.. Ah! – lembrou-se Júlia Mariana. É tão bom cantar! Nunca mais cantei... Uma aragem fresca soprou em seu rosto e agitou de leve algumas flores raquíticas, risos-de-maria e margaridas, murchos, cercados de mato, que sufocavam ao pé do muro ferido. Nunca mais pude aguar meus canteiros. Nunca mais. E começou a acionar lentamente a alavanca.
A cada vaivém sua respiração tornava-se mais difícil e mais exaustiva a tarefa, até que sua cabeça pareceu flutuar, num giro silencioso que foi morrendo e cessou mãos na água.
Baixou-se, mergulhou-as na água. Tinha que lavar as camisas. Mais tarde, se não as encontrasse no arame, Augusto ficaria aborrecido e haveria de perguntar-lhe o que andara a fazer a tarde inteira. E já bastava o afastamento dele, que aumentava sempre, desde que a cintura dos vestidos... Ora, para que pensar em coisas tristes?
Mas como lhe doíam as pernas, como era difícil o equilíbrio! Susteve-se à bomba e apoiou a fronte nas mãos, esperando que a dor cessasse. Como isto maltrata, meu Deus! Nunca mais cantei, nunca mais aguei minhas flores... Mais nítida, cresceu, zuniu. Aturdida, ela se sentiu rodopiar, rápida, vertiginosamente, num mundo escuro, oscilante, cheio de riscos luminosos. Estendeu os braços, segurou-se à alavanca: teve a impressão de que o ferro se encurvava, de que cedia ao peso do seu corpo. Meu Deus, amparai-me!
Voltou para dentro, devagar, tornou à sala de frente. Sentou-se outra vez na cadeira de Augusto e recomeçou a balançar-se. Em breve, olhos fechados, a boca entreaberta, deliciava-se com antigas e amáveis lembranças: certo baile, momentos do noivado, uns sequilhos que sua mãe sabia preparar...
Ah! Era bom estar sentada ali. E como estava silenciosa a tarde e que sossego tão grande havia no mundo! Mas que trabalho fizera para merecer essas recompensas? Não fizera o jantar, não lavara as camisas. E quando ele chegasse... Quando chegasse, iria reclamar. Não responderia, não diria uma palavra- e mais tarde, quando morresse, ele teria remorsos, se arrependeria. Quando eu estiver morta, nessa sala... Mordeu a polpa do dedo polegar, fixou no ventre os pequenos olhos encovados. O remorso passaria logo. Não faltavam mulheres, ele se casaria novamente – e seus cabelos, suas mãos, até aqueles silêncios enormes, que tanto a incomodavam, tudo pertenceria à outra. Oh! Meu Deus, fazei com que eu viva, fazei com que ele me queira novamente, dai-me forças e eu farei, só para Vós, um canteiro de ... de cravos, ou rosas brancas, ou lírios...
Mas quem a ouviria? Como chegaria aos céus uma súplica muda e quem sabe se impura? E depois, todas as flores pertenciam a Deus. Ela não tinha o que dar, não tinha o que oferecer. Inclinou o rosto e começou a chorar.
Quando Augusto voltou, o pranto cessara mas seus olhos ainda estavam vermelhos. Sem olhá-la, ele jogou ao sofá um jornal e o chapéu, tirou o paletó, a gravata e pendurou-os num gancho. (Era o ritual da chegada.) Abriu a janela, apanhou o jornal, tocou no ombro da mulher. Júlia Mariana se ergueu com esforço e ele ocupou o lugar.

Osman Lins. Cadeira de Balanço. IN: Os Gestos. Rio, Melhoramentos, 1979.


Comentário do conto "Cadeira de Balanço".


“Cadeira de Balanço” é mais um interessante conto de Osman Lins, inserido na coletânea “Os Gestos”. Neste livro encontra-se o rigor formal característico deste autor - artesão da palavra -, além de entrar em contato com os personagens inseridos num ambiente doméstico opressor. Nos contos de Os Gestos, o silêncio representa a impotência das personagens.

Neste conto, o autor apresenta um aspecto inusitado ao formato usual das narrativas: uma abordagem predominantemente lírica da condição humana, observável na forma como expõe os sentimentos, os relacionamentos afetivos, e as limitações e incapacidades do ser humano perante a vida. Para isso, Osman Lins utiliza-se largamente da análise do pensamento da personagem feminina, de seus fluxos de consciência mais íntimos, e da análise de seus pequenos gestos, simples e singelos, mas carregados de significado e sentimento, nunca fugindo do contexto da impotência do ser humano frente às situações da vida. 

"Cadeira de balanço", um conto breve, todo ele transcorrido no pensamento da personagem Júlia Mariana, uma mulher casada e grávida. É uma gestação sob riscos, que requer muitas restrições alimentícias e muito repouso, ambas as coisas praticamente impossíveis de serem cumpridas, porque ela precisa cumprir os afazeres domésticos, cuidar do marido, Augusto, que dela já se afasta, talvez, pelo estado alterado do corpo da esposa, inchada, indisposta, com as veias aparentes com a qual não dialoga nem demonstra o mínimo interesse pelo seu bem estar, sua saúde... Trata-se, portanto, de uma relação fria, pautada num aflitivo silêncio, numa sistemática ausência de comunicação. 

Júlia Mariana só se consola quando está na cadeira de balanço do marido, onde pode descansar o corpo pesado e sofrido de uma gravidez complicada. Uma tarde, não consegue cumprir seus afazeres e pensa (todo o conto é o pensamento da personagem) que, quando morrer, Augusto sentirá o valor dela; depois, se arrepende, porque são muitas as mulheres disponíveis e outra ocupará seu lugar. É assim, perdida nos pensamentos e sem concluir suas tarefas domésticas, que o marido a encontra, no “ritual de chegada”, quando volta do trabalho, e, sem uma palavra, apenas com o gesto de tocá-la no ombro, faz com que ela saia da cadeira de balanço para que ele sente e leia o jornal. Sequer a olhá-la, sem uma indagação sobre como passou o dia. Nada... Somente a indiferença, a atitude de superioridade machista e insensível.