3 de dezembro de 2013

Penélope, conto de Dalton Trevisan

Na rua de casas iguais morava, há muitos anos, um casal de velhos. Ela o esperava, costurando na cadeira de embalo da varanda e, quando ele vinha pela rua, com um pacote no braço, descia, de chinelos, os dois degraus da varanda e lhe sorria, com o portão aberto. Cruzavam o pequeno jardim e, apenas na porta, por causa dos vizinhos, mas ainda antes de entrar, ela lhe erguia a cabeça, sem nenhum fio branco, e ele a beijava na testa. Estavam sempre juntos, lidando no seu quintal, ele com as couves, ela com sua coleção de cactos. Quando deixavam aberta a porta da cozinha, os vizinhos podiam ver que ele enxugava a louça para a mulher. E, aos sábados, saíam para o seu passeio diante das vitrinas, ela, gorda, ainda bonita, de olhos azuis e ele, magro, baixo, de preto. Nas noites de verão, ela usava vestidos brancos, de pernas nuas, ele não, sempre de preto. Havia um mistério na vida deles, que nenhum vizinho conhecia. Sabia-se vagamente que os filhos tinham morrido num desastre, há muitos anos. O casal de velhos abandonou tudo, casa, túmulos, bichos e se mudara para aquela cidade, naquela rua. Eram os dois, sem cão, gato, passarinho, nem mesmo galinhas. Tinham medo de se afeiçoar a qualquer coisa. Algumas vezes, na ausência do marido, ela trazia ossos para os cães vagabundos que cheiravam o portão. Quando engordavam uma galinha, a mulher se enternecia por ela e não tinha coragem de matá-la. Então, o velho desmanchou o galinheiro e, no seu lugar, plantou uns pés de couve. Arrancou a única roseira que crescia num canto do jardim; nem a uma rosa se atreviam a dar os seus restos de amor. 
Afora a viagem, que faziam uma vez por ano para visitar o túmulo dos filhos, não saíam de casa, o velho fumando seu cachimbo, a velha trançando as agulhas de tricô, a não ser no seu clássico passeio dos sábados. E foi num sábado que, ao abrir a porta, eles acharam a seus pés, uma carta. Era estranho, porque ninguém lhes escrevia, os dois sozinhos no mundo, e confabularam antes de se decidir a abri-la. Era um envelope azul, sem qualquer endereço. A mulher propôs rasgá-lo, sem ler. Já tinham sofrido demais. Ele respondeu que ninguém podia mais fazer-lhes mal. Não queimou a carta, não se apressou de abri-la, deixou-a sobre a mesa. Sentaram-se um diante do outro, sob o abajur azul da sala, ela com seu tricô, ele com seu jornal. As vezes, ela curvava a cabeça, mordendo uma agulha na boca e com a outra contando os pontos. Quando chegava ao fim, tinha de contar a linha de novo: pensava na carta sobre a mesa. O homem lia com o jornal dobrado, no joelho, e leu duas vezes cada linha para entendê-la: pensava na carta sobre a mesa. O seu cachimbo apagou, não o acendeu, os olhos parados na mesma notícia, ouvindo apenas o seco bater das agulhas entre os dedos da mulher. Então, pegou a carta e abriu-a. Achou um pedaço de papel dobrado, com duas palavras: corno Manso, escritas com grandes letras recortadas de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Entregou o papel à mulher que, depois de ler, o olhou. Nenhum falou. A mulher se ergueu, segurando a carta na ponta dos dedos. Onde é que você vai? o homem perguntou. Queimar... ela respondeu. Não, ele disse. Dobrou o papel dentro do envelope azul e guardou-o no bolso. Juntou para a mulher a toalhinha que tinha caído no chão e continuou a ler o jornal e em cada linha, aquela noite, leu as duas palavras da carta.

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Comentário do conto Penélope, de Dalton Trevisan

No conto Penélope, de Dalton Trevisan, a aparente banalidade do enredo gira em torno de um casal de velhos que tem sua vida metódica abalada por uma série de cartas anônimas que promovem o ciúme paranóico do marido e o suicídio da mulher. Esta aparente banalidade se desfaz quando se observa a construção da linguagem e a maneira como o autor apresenta os fatos, criando um clima de suspense e expectativa. É notável seu intertexto com a personagem Penélope, esposa de Ulisses, não só pelo nome do conto e da personagem, mas, sobretudo, pela simbologia da fiação. O autor vale-se do mito de Penélope para “reinventar” a história por meio do recurso parodístico e criar uma nova história, uma nova situação condizente com os novos tempos e rumos da sociedade e do homem moderno.
A Penélope de Dalton é um espectro daquilo que já foi mais nobre e elevado na arte; espectro que não implica, necessariamente, morte, mas prorrogação e repetição (degradadas).
Ao parodiar o mito de Penélope, Dalton Trevisan inaugurou um “novo paradigma” ao instaurar uma inversão de sentido, proporcionando ao leitor uma versão diferente, em que a instituição familiar e o matrimônio não são vistos como instituições sagradas, mas passíveis de dissolução pelas atitudes do ser humano. É evidente, portanto, o diálogo intertextual e parodístico que o autor faz com o mito grego de Penélope, personagem famosa por sua fidelidade ao marido, posta à prova numa espera de vinte anos enquanto Ulisses estava ausente, lutando em Tróia e, na viagem de retorno para Ítaca, ele se envolve em uma série de aventuras que retardam sua volta. Durante sua ausência, Penélope é disputada por vários pretendentes e, para despistá-los, urde um plano: tecer, antes da escolha, a mortalha de Laerte, pai de Ulisses. Porém, para ganhar tempo, desfazia à noite o bordado feito durante a dia, até o regresso do marido, quando é recompensada por sua fidelidade. 
Embora Trevisan faça referência à personagem da mitologia, no conto, o autor faz uma inversão irônica deste mito, pois, se na versão mitológica, o que está em jogo é o amor, o encontro, a fidelidade e a indissolubilidade do casamento, no conto, os elementos são outros: a morte, o drama da infidelidade e a dissolução do casamento. Não há possibilidade de reencontro amoroso, porque não existe mais este “modelo” de casamento feliz. Trevisan apresenta uma característica negativa da instituição familiar e inverte os famosos “finais felizes”, apresentando a miséria comum, os dramas e as frustrações do homem em sociedade. O autor parodia estes “finais felizes” e desenvolve um contra-canto, demonstrado que, na sociedade moderna, as pessoas convivem com traumas, paranóias e medos. Mas, apesar de mostrar este lado mais “nefasto” do ser humano, Trevisan o faz de uma maneira surpreendente, pois ele não aponta, não culpa nem defende o marido por seu ciúme paranóico e doentio, ele limita-se a apresentá-lo, afinal, ele é “homem” e o ser humano comete falhas e enganos.
Esta apresentação “sem juízo de valor” do drama do marido chega ao leitor pela voz de um narrador onisciente, que penetra na consciência da personagem de tal modo que, em certos momentos, não fica evidente se é a voz do narrador ou o pensamento do marido: uma voz que se introjeta entre o discurso do narrador e do protagonista e que segue o fluxo de consciência.
Acendeu o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. Era sábado, recordou-se. Pessoa alguma tinha poder de fazer-lhe mal. A mulher pagara pelo crime. Ou – de repente o alarido no peito – acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua. (TREVISAN, 1979, p. 176).
A narrativa reconstitui o processo de construção de ciúme percorrendo o “itinerário” que vai do fluxo de consciência e da imaginação do marido aos acontecimentos concretos – a série de cartas anônimas deixadas na porta do casal todos os sábados enquanto saiam ao passeio rotineiro. Entre a evidência das cartas e a incerteza da traição, o narrador acompanha o conflito do marido e penetra em seu inconsciente afetado pelo ciúme, mas deixa a mulher numa redoma de mistério. Os pensamentos de Penélope são uma incógnita, pois não se sabe seu ponto de vista em relação aos fatos, ela aparece sempre tricotando sua toalhinha, envolta numa rede na qual é tanto senhora quanto objeto da trama.
A narrativa faz uma intersecção com o pensamento do marido e nesta paranóia de ciúme acaba deixando insinuações de que Penélope não seria tão inocente assim. De acordo com Kury, numa versão aberrante da lenda, “Penélope ter-se-ia entregue a todos os pretendentes (mais de cem), e desse adultério com todos eles teria concebido o deus Pan” (1999, p.313). No conto, o narrador intercala um discurso indireto livre que gera estas suspeitas da possível traição de Penélope, mas ficam apenas no plano do interdito, uma vez que não se conhece o ponto de vista da mulher.
Voltando as folhas, surpreendia o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recordou a legenda de Penélope, que desfazia de noite, à luz do archote, as linhas acabadas durante o dia e, à espera do marido, assim ganhava tempo de seus pretendentes. Calou-se no meio da história: ao marido ausente enganara Penélope? Para quem a mortalha que trançava? Continuou a estalar as agulhas após o regresso de Ulisses? (TREVISAN, 1979, p.173).
O narrador apresenta o discurso de um homem sem nome atormentado pela desconfiança da traição da mulher e que conhece o legendário de Penélope. O conto torna-se altamente significativo pelas associações entre as duas personagens que, propositalmente, chamam-se Penélope e igualmente aparecem relacionadas às fiandeiras, mas se distanciam pela oposição crucial entre vida e morte. Se, no mito, o que está em jogo é o amor que leva à vida conjugal, no conto, é a morte e a desconfiança que provoca a fatal separação do casal.
Pelas características das personagens do marido e da mulher que o narrador deixa entrever, há no conto uma forte oposição entre Eros e Thanatos, não só em termos de inversão mítica, mas também na estrutura interna da narrativa e do comportamento das personagens: amor e morte se entrelaçam o tempo todo na trama da vida. Na descrição do marido, por exemplo, ele é fortemente influenciado por Thanatos, pois ele está sempre de mal com a vida, veste-se de preto e planta cacto feroz – “Nem a uma rosa se atrevia a dar seu resto de amor” (TREVISAN, 1979, p. 171). Embora apresente esta característica sombria, o resto de amor que lhe sobrava era dedicado à mulher – a sua única companheira, descrita por ele com um tom de carinho e afeição que lembra o cantar de namorado das cantigas de amigo. Este sentimento que nutre pela companheira é quase uma “dependência”, uma vez que a simples possibilidade de a mulher o estar traindo gera toda a crise de desconfiança que o afastará para sempre da mulher e culminará com a perda definitiva do resto de amor que ele nutria – “Por cima do jornal admirava a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, eram azuis como no primeiro dia”(TREVISAN, 1979, p. 172). Mas o comportamento do marido demonstra ser o de uma pessoa insegura, que se fechou para a vida e “contamina” de uma carga “negativa” todos que convivem com ele. A visão um tanto pessimista da vida e o ciúme incontrolável e doentio em relação à mulher provocam a supremacia da morte sobre a vida, o que faz com que sua vida seja influenciada pela regência de Thanatos. A semente da desconfiança é plantada pelas cartas que funcionam como um “canto de sereia” traiçoeiro que enfeitiçou e seduziu o coração do velho, tornando-o cego e atraindo-o para as armadilhas de uma morte em vida ou da vida.
A esposa, no entanto, apresenta indicativos de que é um pouco mais feliz, ou de resquícios de felicidade, pois conserva, ainda, sinais de caridade e amor e de uma visão mais positiva da vida: usava vestido branco; na ausência do marido, trazia um osso para o cão vagabundo, era incapaz de matar uma galinha. Apesar destes indicativos, Penélope tem sua voz limitada e seus pensamentos silenciados, como se a influência de Eros fosse perdendo forças, ao longo do tempo, diante do “coração de ferro” de Thanatos.

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