3 de dezembro de 2013

Comentário do conto Penélope, de Dalton Trevisan

No conto Penélope, de Dalton Trevisan, a aparente banalidade do enredo gira em torno de um casal de velhos que tem sua vida metódica abalada por uma série de cartas anônimas que promovem o ciúme paranóico do marido e o suicídio da mulher. Esta aparente banalidade se desfaz quando se observa a construção da linguagem e a maneira como o autor apresenta os fatos, criando um clima de suspense e expectativa. É notável seu intertexto com a personagem Penélope, esposa de Ulisses, não só pelo nome do conto e da personagem, mas, sobretudo, pela simbologia da fiação. O autor vale-se do mito de Penélope para “reinventar” a história por meio do recurso parodístico e criar uma nova história, uma nova situação condizente com os novos tempos e rumos da sociedade e do homem moderno.
A Penélope de Dalton é um espectro daquilo que já foi mais nobre e elevado na arte; espectro que não implica, necessariamente, morte, mas prorrogação e repetição (degradadas).
Ao parodiar o mito de Penélope, Dalton Trevisan inaugurou um “novo paradigma” ao instaurar uma inversão de sentido, proporcionando ao leitor uma versão diferente, em que a instituição familiar e o matrimônio não são vistos como instituições sagradas, mas passíveis de dissolução pelas atitudes do ser humano. É evidente, portanto, o diálogo intertextual e parodístico que o autor faz com o mito grego de Penélope, personagem famosa por sua fidelidade ao marido, posta à prova numa espera de vinte anos enquanto Ulisses estava ausente, lutando em Tróia e, na viagem de retorno para Ítaca, ele se envolve em uma série de aventuras que retardam sua volta. Durante sua ausência, Penélope é disputada por vários pretendentes e, para despistá-los, urde um plano: tecer, antes da escolha, a mortalha de Laerte, pai de Ulisses. Porém, para ganhar tempo, desfazia à noite o bordado feito durante a dia, até o regresso do marido, quando é recompensada por sua fidelidade. 
Embora Trevisan faça referência à personagem da mitologia, no conto, o autor faz uma inversão irônica deste mito, pois, se na versão mitológica, o que está em jogo é o amor, o encontro, a fidelidade e a indissolubilidade do casamento, no conto, os elementos são outros: a morte, o drama da infidelidade e a dissolução do casamento. Não há possibilidade de reencontro amoroso, porque não existe mais este “modelo” de casamento feliz. Trevisan apresenta uma característica negativa da instituição familiar e inverte os famosos “finais felizes”, apresentando a miséria comum, os dramas e as frustrações do homem em sociedade. O autor parodia estes “finais felizes” e desenvolve um contra-canto, demonstrado que, na sociedade moderna, as pessoas convivem com traumas, paranóias e medos. Mas, apesar de mostrar este lado mais “nefasto” do ser humano, Trevisan o faz de uma maneira surpreendente, pois ele não aponta, não culpa nem defende o marido por seu ciúme paranóico e doentio, ele limita-se a apresentá-lo, afinal, ele é “homem” e o ser humano comete falhas e enganos.
Esta apresentação “sem juízo de valor” do drama do marido chega ao leitor pela voz de um narrador onisciente, que penetra na consciência da personagem de tal modo que, em certos momentos, não fica evidente se é a voz do narrador ou o pensamento do marido: uma voz que se introjeta entre o discurso do narrador e do protagonista e que segue o fluxo de consciência.
Acendeu o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. Era sábado, recordou-se. Pessoa alguma tinha poder de fazer-lhe mal. A mulher pagara pelo crime. Ou – de repente o alarido no peito – acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua. (TREVISAN, 1979, p. 176).
A narrativa reconstitui o processo de construção de ciúme percorrendo o “itinerário” que vai do fluxo de consciência e da imaginação do marido aos acontecimentos concretos – a série de cartas anônimas deixadas na porta do casal todos os sábados enquanto saiam ao passeio rotineiro. Entre a evidência das cartas e a incerteza da traição, o narrador acompanha o conflito do marido e penetra em seu inconsciente afetado pelo ciúme, mas deixa a mulher numa redoma de mistério. Os pensamentos de Penélope são uma incógnita, pois não se sabe seu ponto de vista em relação aos fatos, ela aparece sempre tricotando sua toalhinha, envolta numa rede na qual é tanto senhora quanto objeto da trama.
A narrativa faz uma intersecção com o pensamento do marido e nesta paranóia de ciúme acaba deixando insinuações de que Penélope não seria tão inocente assim. De acordo com Kury, numa versão aberrante da lenda, “Penélope ter-se-ia entregue a todos os pretendentes (mais de cem), e desse adultério com todos eles teria concebido o deus Pan” (1999, p.313). No conto, o narrador intercala um discurso indireto livre que gera estas suspeitas da possível traição de Penélope, mas ficam apenas no plano do interdito, uma vez que não se conhece o ponto de vista da mulher.
Voltando as folhas, surpreendia o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recordou a legenda de Penélope, que desfazia de noite, à luz do archote, as linhas acabadas durante o dia e, à espera do marido, assim ganhava tempo de seus pretendentes. Calou-se no meio da história: ao marido ausente enganara Penélope? Para quem a mortalha que trançava? Continuou a estalar as agulhas após o regresso de Ulisses? (TREVISAN, 1979, p.173).
O narrador apresenta o discurso de um homem sem nome atormentado pela desconfiança da traição da mulher e que conhece o legendário de Penélope. O conto torna-se altamente significativo pelas associações entre as duas personagens que, propositalmente, chamam-se Penélope e igualmente aparecem relacionadas às fiandeiras, mas se distanciam pela oposição crucial entre vida e morte. Se, no mito, o que está em jogo é o amor que leva à vida conjugal, no conto, é a morte e a desconfiança que provoca a fatal separação do casal.
Pelas características das personagens do marido e da mulher que o narrador deixa entrever, há no conto uma forte oposição entre Eros e Thanatos, não só em termos de inversão mítica, mas também na estrutura interna da narrativa e do comportamento das personagens: amor e morte se entrelaçam o tempo todo na trama da vida. Na descrição do marido, por exemplo, ele é fortemente influenciado por Thanatos, pois ele está sempre de mal com a vida, veste-se de preto e planta cacto feroz – “Nem a uma rosa se atrevia a dar seu resto de amor” (TREVISAN, 1979, p. 171). Embora apresente esta característica sombria, o resto de amor que lhe sobrava era dedicado à mulher – a sua única companheira, descrita por ele com um tom de carinho e afeição que lembra o cantar de namorado das cantigas de amigo. Este sentimento que nutre pela companheira é quase uma “dependência”, uma vez que a simples possibilidade de a mulher o estar traindo gera toda a crise de desconfiança que o afastará para sempre da mulher e culminará com a perda definitiva do resto de amor que ele nutria – “Por cima do jornal admirava a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, eram azuis como no primeiro dia”(TREVISAN, 1979, p. 172). Mas o comportamento do marido demonstra ser o de uma pessoa insegura, que se fechou para a vida e “contamina” de uma carga “negativa” todos que convivem com ele. A visão um tanto pessimista da vida e o ciúme incontrolável e doentio em relação à mulher provocam a supremacia da morte sobre a vida, o que faz com que sua vida seja influenciada pela regência de Thanatos. A semente da desconfiança é plantada pelas cartas que funcionam como um “canto de sereia” traiçoeiro que enfeitiçou e seduziu o coração do velho, tornando-o cego e atraindo-o para as armadilhas de uma morte em vida ou da vida.
A esposa, no entanto, apresenta indicativos de que é um pouco mais feliz, ou de resquícios de felicidade, pois conserva, ainda, sinais de caridade e amor e de uma visão mais positiva da vida: usava vestido branco; na ausência do marido, trazia um osso para o cão vagabundo, era incapaz de matar uma galinha. Apesar destes indicativos, Penélope tem sua voz limitada e seus pensamentos silenciados, como se a influência de Eros fosse perdendo forças, ao longo do tempo, diante do “coração de ferro” de Thanatos.

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Mas este “silêncio” de Penélope não invalida a importância da personagem na trama, uma vez que, pela paródia, é possível resgatar informações adicionais que não se encontram explícitas na narrativa. No conto, Penélope ora se aproxima ora se afasta da Penélope mítica pela oposição Eros/Thanatos que remete à simbologia do ato de fiar. A ação de tecer representa criação e vida, abrange o domínio do ritmo e da continuidade, aos movimentos de ir e vir, fazer e desfazer: os elementos vida e morte correspondem ao vaivém da urdidura. Assim como no mito, Penélope tece/borda uma toalhinha, fazendo e desfazendo pontos, num trabalho que exige tempo e paciência. Porém, se no mito, ao bordar a mortalha do sogro, Penélope perpetua o amor ao marido, tecendo de longe a trama da vida e do encontro; no conto, Penélope tece, perto do marido, a mortalha da morte e da separação – “Entrou na sala, viu a toalhinha na mesa – a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia – o marido em casa” (TREVISAN, 1979,p. 175).
O ato de fiar representa um eterno retorno pelo processo de tecer e desfazer o trabalho começado, recomeçado e interminável. A escolha de Penélope por desfazer à noite o que fizera de dia garante-lhe tempo para fabricar suas próprias defesas contra o homem, o esposo e o pai [...] É uma fiandeira prevendo o futuro. Também no conto, Penélope é uma fiandeira, uma parca ou moira que borda a própria mortalha, decidindo o momento em que o trabalho ficará pronto e, finalmente, cortará os fios que a prendem à vida, determinando, assim, o momento de sua morte. Ao contrário do mito, Penélope não suporta a longa espera, o momento em que o marido “voltaria” a si, superando a paranóia do ciúme e reconhecendo sua fidelidade. Antes, decide por fim ao drama, sendo senhora de seu destino ao cortar os fios que a ligam à vida, embora ainda dê um tempo ao marido, pelo processo fazer e desfazer a toalhinha. Em sua “reclusão”, Penélope é uma fiandeira, e, a exemplo de Átropos, corta o fio da vida. Ao fazer isso, ela torna-se uma espécie de fiandeira que tece, mede e corta, no mistério, seu destino e o destino dos homens. E é por ser uma fiandeira que ela embaralha a vida do marido, pois ele estará condenado ao remorso e à culpa por seu suicídio.
Saiu de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. [...] Os dois degraus da varanda – “Fui justo”, repetia, “fui justo” –, com mão firme girou a chave. Abriu a porta, pisou na carta e, sentando-se na poltrona, lia o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.(TREVISAN, 1979, p. 176).
No conto, Penélope corta o fio de forma definitiva, sem que haja qualquer possibilidade de reatar o fio partido, pois sua morte representa uma separação sem volta. No caso de Penélope, o fio não parte por vontade divina, e sim por vontade humana, por sua própria vontade; o fiar não é criação e sim separação, pois representa o fim da espera de que Eros poderia voltar a habitar a vida do casal.
A simbologia da fiação enquanto este eterno recomeçar ou criação aparece no conto às avessas, uma vez que o trabalho de “fiação” de Penélope, embora sirva para ganhar tempo e avaliar a situação, não está voltado ao eterno retorno ao mesmo: há um fim e este fim não implica o retorno do marido e a reconciliação, mas ao contrário, a sua solidão e o remorso. Não há possibilidade de reencontro amoroso neste mundo constituído de “homens” frustrados e inseguros, que se deixam conduzir por forças que se opõem à vida e ao amor. Dalton Trevisan parte de um mote que, na tradição literária, seria uma “novela exemplar” da capacidade vivificante do amor e da felicidade conjugal e parodia-o, criando uma “novela nada exemplar”, mas que reflete a sociedade contemporânea. E, nesta perspectiva, a criação literária do autor está em sintonia com a proposta moderna: a ruptura com a tradição e ao mesmo tempo o resgate da mesma para compor o novo e (re) criar.
O marido, no conto, é um misto de homem frustrado e infeliz, apresentando características culturais patriarcais em seu comportamento possessivo, como, por exemplo, o fato de a mulher só sair de casa em sua companhia e de ela estar sempre no espaço fechado da casa, fazendo atividades do âmbito doméstico: tricotar, limpar a casa, molhar as flores. Tal comportamento corrobora para o esmaecimento das forças de Eros na vida do casal, a tal ponto que ela decide por fim ao fio da vida e terminar de uma vez por todas com seu suplício em ter que conviver com a desconfiança do marido.
Os traços remanescentes da cultura patriarcal são perceptíveis, também, na forma como o marido, após a morte de Penélope, sente sua alma lavada, como se tivesse “lavado sua honra com sangue”, embora não sendo ele o agente direto da morte – “Não sentiu piedade, havia sido justo” (TREVISAN, 1979, p. 175). No final, a voz da consciência, como um “superego” acusador, repetirá para sempre em sua memória que ele não fora justo, uma vez que continuara recebendo as cartas anônimas – as mesmas que implicaram seu ciúme e o conseqüente suicídio da mulher - mas era tarde demais para redimir-se, estava condenado a viver com o peso da injustiça cometida com a mulher: a amiga que ele amava e que sua paranóia levou à morte. A morte não trouxe alívio nem a sensação de ter a honra - lavada -, ao contrário, trouxe desespero e a certeza de uma mancha que jamais poderia ser apagada, já que estava marcada pela tragédia e o sangue da mulher, repetindo, a cada instante, na sua solidão, na memória, no silêncio e no vazio da casa que fora injusto.
Numa literatura sem ilusões, Dalton Trevisan faz um contra-canto, no qual resgata e se afasta do mito grego, ao propor um mito às avessas, em que se observa, ao invés da fortaleza conjugal, a fragilidade dos laços matrimoniais e do ser humano, expondo o lado mórbido desses homens sem nome da sociedade moderna, que se deixam reger pela influência do Filho da Noite, Thanatos, limitando o campo de influência de Eros, o deus do amor que rege e gera a vida.

Autor: Sueli Aparecida da Costa, Mestra em Letras - Área de concentração em Linguagem e Sociedade (Unioeste - PR)

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