12 de junho de 2014

A Teoria do Medalhão, de Machado de Assis

 - Estás com sono? 
- Não, senhor. 
- Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são? 
- Onze. 
- Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
- Papai... 
- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
- Sim, senhor. 
- Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade. 
- Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá? 
- Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos... 
- É verdade, por que quarenta e cinco anos? 
- Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio. 
- Entendo. 
- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
- Mas quem lhe diz que eu... 

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Comentário do conto Teoria do Medalhão, de M. de Assis

O conto, Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, traz uma análise do comportamento de alguns membros da sociedade. Descreve-os de maneira extremamente clara, precisa, com um humor recatado, ironizando-os usando como pano de fundo uma conversa "inocente" como a de um pai com um filho.
Este conto, um dos mais deliciosos libelos do escritor contra a mediocridade intelectual e social, é satírico por excelência, lembrando a ironia filosófica dos relatos curtos de Voltaire. Praticamente sem ação, seu núcleo temático gira em torno de uma exposição de idéias cínicas, através do diálogo entre pai e filho.
O narrador cede seu espaço à reprodução das falas das duas únicas personagens: pai e filho. O tom terrivelmente irônico da fala do pai revela, obviamente, a denúncia feita pelo autor por trás do conto em relação a uma sociedade burguesa medíocre e arrogante, que prega o sucesso a qualquer preço, mesmo à custa do empobrecimento da vida interior e das relações humanas.
O diálogo familiar acontece numa noite às onze horas, após um jantar comemorativo dos 21 anos do filho. Quando pai e filho ficam a sós na sala, este aconselha o filho a se tornar um Medalhão, ou seja, um homem que ao chegar à velhice, tenha adquirido respeito e fama na sociedade do Rio de Janeiro do século XIX. Para tanto, será necessário que ele mude seus hábitos e costumes e passe a viver sob uma máscara, anulando os seus gostos pessoais e suas atitudes. E nisso disserta sobre a necessidade do filho de sempre manter-se neutro, usar e abusar de palavras sem sentido, conhecer pouco, ter vocabulário limitado etc. Ao final, é uma bela ironia machadiana sobre como encontram-se os valores da sociedade de sua época. Portanto, o medalhão, tipo criado pelo autor neste conto, se caracteriza por aparentar ser o que não é. Caracteriza-se, sobretudo, por ter, como nos medalhões, uma face oculta e sem atrativos, voltada apenas para o corpo do dono, e outra, vistosa, virada para o exterior, para ser vista e admirada, respeitada.
Trata-se, portanto, de um contos que mostra Machado de Assis como um crítico afiado da sociedade brasileira no que ela tem de mais profundo: a mediocridade condecorada, a troca de favores como motor básico das relações sociais, a hipocrisia, tudo aquilo que perduraria para além da troca de regime. O conto é uma lição a todo homem que almeja ter prestígio, ser reconhecido pela sociedade e que elimina qualquer expressão da subjetividade em nome da absorção ao senso comum, à opinião da maioria.
Eliminada a presença de um narrador temos, de um lado, a presença de um pai que quer projetar seus ideais frustrados de sucesso no jovem filho; de outro lado, o filho que se sujeita a aceitar passivamente as imposições do pai, anulando-se.
Os papéis sociais no conto machadiano, pertencem, num primeiro momento, a um grupo restrito: pai e filho. As personagens não possuem nomes e são, portanto, caracterizadas somente pela posição que ocupam no grupo familiar. Num segundo momento, no decorrer da narrativa, há a construção de um terceiro papel social, este pertencente a um grupo mais amplo: o Medalhão.
No diálogo estabelecido no conto, há a presença das formas de tratamento. O pai dirige-se ao filho sempre utilizando a 2ª pessoa pronominal: tu, te, contigo, teu etc.; o filho, por sua vez, utiliza-se a 3ª pessoa, com valor de 2ª pessoa: vosmecê, lhe, o senhor etc. No primeiro caso, a presença da 2ª pessoa dá um valor de proximidade ao discurso (ou tentativa de), dando um maior sentimento de intimidade. No segundo caso, o uso da 3ª pessoa, mostra uma aceitação do discurso paterno, como se não houvesse outro meio de discussão. É a aceitação pacífica do papel social que cabe ao filho no final do século XIX.

7 de junho de 2014

Os gestos. Conto de Osman Lins


Do leito, o velho André via o céu nublar-se, através da janela, enquanto as folhas da mangueira brilhavam com surda refulgência, como se absorvessem a escassa luz da manhã. Havia um segredo naquela paisagem. Durante minutos, ficou a olhá-la e sentiu que a sua grave serenidade o envolvia, trazendo-lhe um bem-estar como não sentia há muito. “E eu não o posso exprimir – lamentou”. Não posso dizer. “Se agitasse a campainha, viria a esposa ou uma das filhas, mas seu gesto em direção à janela não seria entendido”. E ele voltaria a cabeça, contendo a raiva. 
Para sempre exilado – pensou. Minhas palavras morreram, só os gestos sobrevivem. Afogarei minhas lembranças, não voltarei a escrever uma frase sequer. Igualmente remotos os que me ignoram e os que me amam. Só os gestos, pobres gestos... 
Os pensamentos fatigaram-no. Veio, como de outras vezes, a ideia de que tudo aquilo poderia cessar, restituindo-o à companhia dos seus, mas ele recusou a esperança. Nunca mais - insistiu. Nunca. Esta é que é a verdade. “Súbita, febril impaciência fê-lo agitar-se, trazendo-lhe à mente o seu despertar um mês antes e o horror ao perceber que estava sem voz, mas ele tentou afastar a lembrança. “Esquecer todas as palavras”. Resignarr-me ao silêncio.” 
Um casal de pássaros esvoaçou, além da árvore, dando a impressão de que as asas tocavam o céu cinzento, levantando um ondular de ondas que se cruzavam e extinguiram-se. A ilusão embalou-o, durante segundos achou-se debruçado ante uma paisagem lacustre, vinculada à sua juventude, ignorava por que laços; mas quando um vento agitou a mangueira, o instante presente retomou-o com tal suavidade e de modo tão repentino, que não o surpreendeu: a aspereza da barba sobre o dorso da mão, o desapontamento abafado, o calor do leito e os sons vadios ressurgiram sem choque, como se o distante lago não houvesse fremido e se dissipado num segundo. 
Na sala de jantar, a mulher gritou para que apanhassem a roupa estendida no quintal: ele ouviu a irritada exclamação da filha mais nova e seus pés descalços afastarem-se correndo. Sorriu: distraía-se agora imaginando grandes panos brancos soprados pelo vento – uma fila interminável de lençóis túmidos, camisas bracejantes e lenços -, nítidos, reais, arrebatados uma a um por invisíveis que os faziam desaparecer. Algumas pancadas extinguiram-nos: ele reencontrou o céu mais escuro, a copa mais virente: mas só percebeu que haviam batido à porta da rua, quando a mulher cruzou o corredor, magra, lépida, sem olhar para o quarto. 
“Uma visita. Inútil imaginar-lhe o rosto. É uma visita. “E ficou a olhar para a entrada, coração aos saltos, buscando reconhecer a voz masculina que se alternava com a da esposa e se avizinhava”. “Rodolfo”! Cinco ou seis dias talvez mais!” Queria abraçar o recém-chegado e quando este se aproximou, ele não conteve o impulso: estendeu os braços e o reteve junto a si, emitindo um gemido nasal, a suportar uma onda de felicidade transbordante, cujos motivos desconhecia. Antes, os encontros com Rodolfo lhe davam prazer, mas não provocavam efusões. Agora, o rosto largo, de maçãs salientes, o semblante sem malícia, o torso amplo, a alva roupa de linho e o ar de vida que ele desprendia, eram coisas inestimáveis e André continuava a estreitá-lo, gemendo, até que o olhar indecifrável da esposa, visto por sobre a nuca do amigo fê-lo afrouxar o amplexo. 
Sentado junto à cama, o rapaz se esforçava para não fazer perguntas nem ficar em silêncio: o rosto móbil oscilava entre a gravidade e o riso, detendo-se, às vezes a olhá-lo entre apreensivo e cismático – a expressão que deveria ter ante um filho doente – e o homem indagava se era a sua vitalidade ou a roupa branca o que o fazia repousante. Rodolfo lembrava um marinheiro, sua presença tinha uma amplitude de viagens. Como era diferente daquela mulher por trás dele, em seu vestido escuro, fria e vigilante, pronta a insinuar que a visita se alongava! 

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Comentário do conto Os Gestos.


Osman Lins ocupa um lugar muito especial no panorama da ficção brasileira contemporânea. Com uma produção literária dicotomizada em duas fases distintas, uma tributária da tradição inovadora e outra, a derradeira, absolutamente revolucionária, ímpar e sem precedentes na literatura produzida no Brasil até então. Resumindo: Osman Lins deixou uma obra extraordinária, digna de merecer destaque entre os mais importantes e notáveis escritores de sua geração, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. 
Os Gestos pertence à primeira fase da escrita linsiana. Nessa fase, o autor já produz uma literatura avançada, com componentes bem individualizadores de um estilo rico, que apresenta sensibilidade para o intimismo, psicologismo e “ascendeu à fusão clima regional” e “sondagem interior”, conforme sentenciou A. Bosi 
No conto, Os gestos, Osman Lins revela de forma altamente sensível à condição existencial do homem – André - enclausurado no reduzido limite de um quarto, dependente dos familiares, incapacitado para comunicar-se verbalmente, por ter perdido a voz. Ele é um ser solitário e carente de afeto. A impossibilidade de comunicação tem alterado as suas relações com a família e com o mundo. O personagem protagonista André, um homem velho, doente, exilado em si mesmo, contra o silêncio que o angustia e também o desprende, passa a manifestar-se somente através de gestos, às vezes, não entendidos. 
André é um homem que fez do silêncio sua linguagem dentre a estranheza dos acontecimentos externos “Do leito o velho André via o céu nublar-se, através da janela, enquanto as folhas da mangueira brilhavam com surda refulgência, como se absorvessem a escassa luz da manhã. Havia um segredo naquela paisagem” (O. Lins, 1994, Os gestos, p. 11). Ele habituou-se a ouvir os sons ao redor, dentro e fora da casa. Os resmungos da mulher e o desespero das filhas, mediante a sua mudez, e desinteresse pelos seus gestos, que não eram lidos.
André encontrava-se derrotado desde que perdera a voz. “Para sempre exilado” (OG, p. 11), era assim que se sentia. Exilado em si mesmo, sem retorno aparente. A ausência da comunicação transita para o ambiente familiar onde ele vive. Na família ninguém esconde ou disfarça a irritabilidade gerada por tanta lida e pela permanência de visitas, como a do amigo Rodolfo: “Queria abraçar o recém-chegado e, quando este se aproximou, ele não conteve o impulso: estendeu os braços e o reteve junto a si, emitindo em gemido nasal, a suportar uma onda de felicidade transbordante, cujos motivos desconhecia” (OG, p 12). O Contato físico funciona como demonstração de aproximação e vínculo comunicativo. O abraço representa uma manifestação de carinho entre as pessoas. 
O diálogo não parece ser comum naquela casa, cada um parecia que falava para si, cada um fechado em seu mundinho individual. Essa atmosfera fria do ambiente leva o próprio André a manifesta-se interiormente “Minhas palavras morreram, só os gestos sobrevivem. Afogarei minhas lembranças, não voltarei a escrever uma frase sequer. Igualmente remotos os que me ignoram e os que me amam. Só os gestos, pobres gestos...” (OG, p. 11). A reação das pessoas era a mesma diante daquele quadro. Segundo o narrador, o protagonista preferia essa situação “Nunca mais” (OG, p. 11). Era a sua decisão “Esquecer todas as palavras. Resignar-me ao silêncio” (OG, p. 11). André reconstrói o seu estar no mundo solitário e quase ignorado, numa linguagem que se reduz aos gestos. Não quer saber dos membros da família “Veio-lhe então o desejo de estar só, sem aquelas presenças inúteis, escorraçou-as com um gesto brutal e deitou-se” (OG, p. 13).

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