22 de abril de 2015

Comentário do conto O Espelho, de Machado de Assis.


Neste conto, o autor ironiza a sociedade da época em uma das mais arraigadas crenças do povo cristão, que é a existência de uma única alma portadora de expressão única e inabalável até então.
Ao escrevê-lo, Machado de Assis lança a idéia de que o indivíduo está sujeito a duas "almas". Segundo ele, o ser possui uma alma interna, a qual "olha de dentro para fora" transmitindo seus anseios particulares e valorizando sua consciência individual. Além disso, há uma alma externa, que "olha de fora para dentro", composta de valores alheios ao indivíduo que são, porém, indispensáveis para a concepção do mesmo. Machado exemplifica: "a alma exterior daquele judeu (Shylock) eram seus ducados; perdê-los equivalia a morrer".
O conto em questão tem início e fim com o foco narrativo em terceira pessoa; neste intervalo ocorre o discurso do personagem principal, Jacobina, que narra “um caso de sua vida” aos cavalheiros presentes na “casa do morro de Santa Tereza”.
A narrativa de Jacobina é linear, interrompida uma vez ou outra por pequenas perguntas dos outros cavalheiros que o ouviam atentamente, mas significativamente interrompida uma única vez pelo narrador em terceira pessoa que denuncia: “Santa Curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia”(p. 347).
Na trajetória de sua narrativa, o personagem percorre o caminho da tradição bíblica, mitológica, literária e filosófica para melhor expor os acontecimentos, afinal,como ele mesmo diz, “os fatos são tudo”.
Trata-se da história de Jacobina, rapaz pobre que se torna alferes aos 25 anos, nomeação que gerava status e despertava inveja em muitas pessoas, “Houve choro e ranger de dentes”. Era um rapaz pobre; seu fardamento foi dado por amigos e depois disso passou a ser visto como o cargo que ocupava na guarda nacional, “o alferes eliminou o homem”.
Sua tia Marcolina convidou-o a passar uns dias em seu sítio e cercando-o de mimos por todos os lados, mandou colocar um grande espelho, relíquia da casa,
em seu quarto, “obra rica e magnífica”. Tudo corria bem, até que sua tia Marcolina recebe notícias da doença de sua filha e viaja para vê-la, deixando-o sozinho com os escravos.
Jacobina sentiu uma grande tristeza, “coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere”, e os escravos o trataram muito bem, era “nhô alferes, de minuto a minuto”. Mas no dia seguinte Jacobina estava só, os escravos haviam fugido, e com eles todos os paparicos, não havendo ninguém mais no sítio, “nenhum ente humano” para reconhecer nele o “alferes”. Jacobina perdera então sua motivação para a vida, “nunca os dias foram mais compridos”. Tinha medo de olhar-se no espelho, “era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois”. Não era mais possível ver sua imagem refletida no grande espelho. Sua imagem era agora difusa, e sua figura era completa apenas nos sonhos, “o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior”. Até que ele tem a idéia de colocar a farda e olhar-se diante do espelho. Assim fardava-se uma vez ao dia e colocava-se diante do espelho, retomando sua identidade, já “não era mais um autômato, era um ente animado”.
Revela-se no início da narrativa um tom de incerteza e volubilidade das coisas, que permeia toda a estrutura do texto. O conto começa com “quatro ou cinco cavalheiros" que debatem acerca da natureza da alma, sobre metafísica enfim.
“Por que quatro ou cinco?” Porque o quinto personagem, Jacobina, mantém-se quieto durante a conversa e somente se propõe a contar um caso de sua vida se os outros lhe ouvirem calados.
“Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos” (p. 345).
Na caracterização do ambiente, assim como da narrativa, cria-se uma atmosfera difusa na descrição da casa do morro de Santa Tereza, cuja “luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora”. Também, quando o narrador se refere a “quatro ou cinco cavalheiros”, ou lhes atribui a idade de “quarenta ou cinqüenta anos”, desencadeia-se no texto uma duplicidade, um turvamento de imagens.
“Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de cousas metafísicas” (v. 2, p. 345). 
Com esta frase, “Entre a cidade..., e o céu...”, o narrador machadiano faz uma alusão, a qual nos remete, embora com o uso de outras palavras, à célebre frase de Shakespeare, “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.
A seguir, Jacobina descarta a possibilidade de conjeturar sobre coisas metafísicas e assim se dispõe a contar aos cavalheiros um caso concreto de sua vida e inicia seu relato:
"Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro(...)." (p. 346).
E assim, Jacobina define a alma “metafisicamente falando”, como “uma laranja”. Utilizando-se da citação literária para melhor expor seus argumentos, e melhor
esclarecer sobre a alma exterior das pessoas, o narrador machadiano cita Shylock, personagem da peça O Mercador de Veneza de Shakespeare.

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A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados: perdê-los equivalia a morrer. Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração. Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele (p. 346).
Com maestria, Machado traz da peça de Shakespeare a cena que mostra a verdadeira alma de Shylock, um judeu que no auge de sua avareza prefere a filha
morta a perder suas pedras e ducados. Por meio dessa citação, Jacobina consegue transpor para o conto a “alma exterior” do judeu ao citar o momento em que ele recebe de Tubal notícias de que sua filha Jéssica teria gasto, em apenas uma noite em Gênova, oitenta ducados do dinheiro que lhe havia roubado.
"O ofício da segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira" (p. 346)
Continuando a expor sobre a alma e a capacidade de transformação de sua natureza, Jacobina deixa claro que não se refere a certas almas absorventes. Assim cita a pátria de Camões como sua absorvente alma exterior e o poder como alma externa e única de César, imperador romano, e de Cromwell, estadista inglês.
"Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras embora enérgicas, de natureza mudável". (p. 346).
Essas referências levam, primeiramente, à história de Camões e seu poema épico Os Lusíadas, obra que exalta o povo português e é dedicada a D.Sebastião, rei de Portugal na época de sua publicação. 
Voltando aos estadistas, Jacobina cita César e Cromwell, ditadores que viveram e tudo fizeram pelo poder, e embora tendo recusado o título de rei, ambos morreram soberanos em seu próprio despotismo.
Se pensar na alma externa como uma motivação para a vida, ou seja, os objetos de desejos de uma pessoa, essa alma será “de natureza mudável”.
"Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano.
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome: chama-se Legião..." (p. 347).
Jacobina alude à Bíblia quando chama de “Legião” a senhora que troca de alma exterior por várias vezes no ano. Citações bíblicas são freqüentemente encontradas em sua obra. Nesse trecho, Jacobina refere-se à passagem bíblica “O endemoninhado geraseno” (Mc 4-5), na qual Jesus se depara com um homem possuído que morava no cemitério e apresentava fenômenos misteriosos.
O narrador fala a seguir da “Santa curiosidade” e a denomina como alma da civilização e também como o pomo da concórdia:
"Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! Tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia" (p. 347).
O narrador, depois de ter lançado o pomo da concórdia, continua então a narração:
“Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional” (p. 347).
“Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que estes perderam” (p.347). 
Mais uma vez o narrador recorre à Escritura, e, desta vez, para comparar as atitudes das pessoas em relação ao seu posto de alferes.
Em ambos os casos, a ironia do personagem-narrador estaria fundamentada no descompasso entre o universo sagrado e solene da Bíblia, deslocando esse
universo para um fato secular, a sua nomeação de alferes; soam ridículas aos olhos do leitor a pretensão e a aspiração de grandeza da personagem Jacobina,
que traz para o plano pessoal, do cotidiano, um tema que concerne ao plano religioso como um forte argumento em seu discurso.
No trecho a seguir, aliado a outros elementos que compõem a caracterização do objeto, o espelho serve também para dar ênfase ao aspecto social do personagem e seu posto de alferes.
"Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição" (p. 347).
A palavra espelho, além de dar nome ao conto e ser munida de importantes significados para o entendimento do texto, encerra aqui um outro sentido. O grande
espelho, “obra rica e magnífica”, denota a vaidade do homem, que mistura a tradição do objeto com o prazer de ser visto por si próprio e pelos outros. E o fato
de o espelho ter pertencido a nobres vindos com a corte de D. João VI deixa ainda mais nítida a intenção do autor em colocar a importância da tradição, da imagem na sociedade, a importância de ser visto pelo outro.
Em O Espelho, Machado trata da alma humana e também igualmente, da alma nacional do Brasil, que corre também o perigo de não existir quando se contempla ao espelho. O que ocorre neste trecho, na descrição do espelho, é uma analogia à política nacional da época:
"O espelho estava naturalmente muito velho, mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom" (...) (p. 347).
Pode-se notar que Machado traça um paralelo entre a alma de Jacobina e a alma nacional brasileira, duas imagens que se projetam ou se dissolvem na moldura
velha, mas tradicional. Enquanto Jacobina precisava de sua farda de alferes para compor sua imagem, a alma do povo brasileiro talvez precisasse da tradição monárquica para sua representação no espelho da sociedade, como a velha moldura coberta de madrepérolas, mas corroída pelo tempo. Há implicitamente nesta
caracterização do espelho uma crítica à oligarquia brasileira, tão presente na Monarquia quanto seria na iminente República. Era a tradição oligárquica, o poder
centralizador como moldura de nossa sociedade, moldura velha mas boa, difícil de quebrar, “era a tradição”. E assim, neste conto, coexistem os focos de duas correntes da interpretação literária sobre Machado de Assis, o caráter universalizante de um lado e de outro o histórico-social.
Jacobina recorre agora à filosofia para continuar sua narrativa, e introduz em seu discurso uma anedota filosófica.
“Os fatos explicarão melhor os sentimentos; os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando”. (p. 348).
Quando o personagem diz que “um filósofo antigo demonstrou o movimento andando”, ele está se referindo à famosa anedota do filósofo Diógenes, que, andando
de um lado para outro, disse: o ser é imóvel. 
A próxima citação surge com o famoso estribilho do poeta americano Longfellow:
“-Never, for ever! - For ever, never!” para representar o pêndulo do “relógio da tia Marcolina”, que feria-lhe “a alma interior”. Com esses versos, o narrador alude não somente ao poeta americano, mas também à epígrafe utilizada por este, que cita Bridaine, “L’eternité est une pendule...”, no início do poema The old clock on the stairs (Bradley, 1970, p. 1509). Jacobina utiliza-se dos versos de Longfellow para expressar o seu desespero diante do tempo, tempo que mediante seu sofrimento lhe parecia, portanto, uma eternidade.
"Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever! - For ever , never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada" (p. 349).
Para o personagem-narrador, não basta apenas explicar ou narrar o fato de o relógio parecer marcar a eternidade e a estabilidade do tempo. Naquele momento,
o relógio revelava para Jacobina total angústia mediante a solidão, e, com ela, a impossibilidade de ser o “alferes”, perdendo sua alma exterior.
"Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes" (p. 350).
No trecho acima, fica claro que Machado conhecia a importância do que Freud definiria como inconsciente e a relação disso com os sonhos.
No momento de maior tensão do conto, no qual o personagem Jacobina se sente perdido no tempo e espaço, pela eternidade do “tic-tac” do relógio, o narrador
utiliza-se da citação de O Barba-Azul, de Charles Perrault. No conto francês, a esposa de Barba-Azul não consegue conter sua curiosidade e entra no único aposento em que o marido a proibe de entrar quando sai em viagem. É também na história francesa, o momento de maior tensão para a personagem, que se vê perdida com o regresso do marido que descobre que ela entrou no aposento proibido.
Sem chances de continuar viva, ela espera ansiosamente pela chegada dos irmãos, para que a salvem da morte, e chama incessantemente pela irmã “Souer Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir?" (p. 350). “E tal qual como a lenda francesa”, na espera angustiante de Jacobina, ele não via “nenhum sinal de regresso”. E enquanto a moça da lenda francesa via “o sol que cintilava e o capim que verdejava” (Perrault, 1994, p. 97), Jacobina “quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel” (p. 350).
Nessa citação, o tempo é a vertente que se divide em dois caminhos: o tempo de Jacobina, que custa a passar e é marcado pela eternidade do “tic-tac” do relógio, e o tempo da mulher de Barba-Azul, que possui apenas um quarto de hora e nem mais um segundo para se salvar da morte. Portanto, o tempo é o principal perigo que os dois personagens enfrentam. O desespero de Jacobina diante de sua imagem difusa no espelho à espera de alguém, e da hora que demorava uma eternidade a passar, contrapõe-se ao desespero da esposa de Barba-Azul; para ela restava apenas um quarto de hora, nem um segundo a mais, para que seus irmãos chegassem e a salvassem das mãos de seu marido. Portanto, sentidos diferentes que nos levam a idéias semelhantes. A passagem rápida do tempo para a esposa de Barba-Azul acarreta na sensação da iminente morte, e no caso de Jacobina a passagem lenta do tempo contribui para a dissolução do seu “eu”.

Fonte: Revista ARGUMENTO (Revista das Faculdades de Educação, Ciências e Letras e Psicologia Padre Anchieta Jundiaí - SP,: Sociedade Padre Anchieta de Ensino) - Ano VI - nº 12 - Dezembro/2004


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